21 de jun. de 2013

ACAMPAMENTO NO DESERTO

“Dê aos jovens a esperança ou a ocasião de um massacre e eles lhe seguiram cegamente” (Emil Cioran)


Gostaria de discorrer rapidamente sobre três momentos distintos, fenômenos que se articulam e despontam em nosso no horizonte, corroborando com a tese de que discursos difusos têm alimentado a “revolta popular” e confundido o imaginário da sociedade como um todo: a apropriação do movimento pela mídia com a justificativa de unificar as milhares de vozes e seus respectivos anseios; a esquizofrenia popular, sua mixórdia de sentimentos e sua ausência de propostas claras, elementos de uma catarse coletiva que ajudam a embotar um movimento que acaba de nascer; a abordagem destrutiva de elementos isolados na condução das manifestações e uso desmedido de violência por parte das forças coercitivas do Estado, que não só dispersa a multidão, mas atinge equivocadamente pessoas e alas pacíficas do "movimento". Esses fenômenos unificados ajudam a dar um tom caótico ao momento.

Por isso, antes de mais nada, gostaria de realizar um deslocamento na epígrafe acima, a substituição de um termo, uma operação que pode parecer irrisória, mas que me parece necessária: dê aos juvenis a esperança... Com isso, quero dizer que o espírito jovem difere radicalmente do juvenil. Enquanto aquele carrega “um caos dentro de si”, podendo “dar à luz uma estrela bailarina”, para parafrasear o Zaratustra de Nietzsche, este apenas carrega o caos - e o carrega por tanto tempo, sem saber o que fazer com isso, sem saber como transformar esse caos, que o descarrega em sua forma mais elementar; a ignorância. Decorre daí que é um espírito jovem, não juvenil, matéria indispensável ao árduo processo de construção de um exercício político coerente com nossas pretensões de Brasil.

A jovialidade invectiva não tem sua dimensão numa realidade celerada, mas num espaço criativo, isto é, direcionado à criação e à fecundidade da maturação. Propostas imediatistas certamente não encontrarão terreno fértil nessa perspectiva, e até mesmo soarão infantis. Por isso, acredito ser imperativa a articulação imediata de representações, agremiações e/ou partidos, bem como o estabelecimento de propostas maduras que devem servir de norte para lutas subsequentes no campo do convencimento e da razoabilidade estimulante. Passam por aí o respeito ao próximo e ao direito deste em manifestar sua opinião.

Diante disso, não há espaço para a barbárie despertada por grupos com discursos perigosos, ufanistas com carinhas pintadas a cantarolar o hino; tão logo exigem a “não-violência” querem solapar o direito do grupo ao lado de defender seus ideais. Vale lembrar que foram posturas nacionalistas como essas que viabilizaram a chegada de Hitler e Mussolini ao poder no início do século passado. Bandeiras são levantadas a todos os momentos; algumas bradando a esmo contra a corrupção, um inimigo invisível que atinge a sociedade de maneira transversalizada, outras com coerência argumentativa, sugestões que visam a participação, a disposição coletiva.      
   
A grande imprensa (ou imprensa de mercado, como preferem alguns), por seu lado, insiste em confundir o cidadão com mensagens que vendem um suposto conhecimento sobre o objeto em questão; as manifestações. Revistas de qualidade duvidosa, como Época, já estampam capas convidando os leitores a descobrir quem são, o que pensam e quais as propostas dos jovens presentes nesses atos. Programas televisivos de amplo alcance, como Globo Repórter e Jornal Hoje, convocam os espectadores a assistir ao que foi desvendado pelas suas excelentes equipes de reportagem, a “verdade” sobre quem são e o que querem os manifestantes. 

Sites de notícia como o G1 divulgam as “últimas” pesquisas do Ibope, preparadas há dias, mas curiosamente apenas agora divulgadas, que apontam e associam `as manifestações, ainda que tacitamente, a queda repentina da presidente da república - sem fazer questão de mencionar que os dois últimos representantes que ocuparam o cargo, se comparados os mesmos períodos, estavam bem abaixo. Ora, “teatralidade e ilusão são armas poderosas para os não-iniciados” proferiu certa vez um personagem de ficção. Como convencer de algo que ainda nem chegou a ser, de que é, sem usar labirintos de palavras, artifícios verbais, falácias e construções discursivas obtusas?

O Brasil não “acordou agora"! Talvez nem tenha acordado ainda. Em vigília, quem sabe. A promoção de uma ideia como essa gera a falsa impressão de uma ruptura permeada por aquele imediatismo não salutar, como se problemas seculares que sequer são mencionados (reforma agrária?) fossem ser resolvidos agora. “O povo foi às ruas, disse não à corrupção, à impunidade, então está tudo resolvido” é o desdobramento natural desse recorte. A despeito das investidas nessa linha: o enredo é dramático e dificilmente teria um bom desfecho com uma trama tão rasa.

Paralelamente, mas não curiosamente, essa mesma “imprensa de mercado” não parece aprofundar-se nos excessos cometidos pela Polícia Militar, por exemplo, nas imediações da Avenida Presidente Vargas, foco da manifestação da última quinta, 20 de junho. Depoimentos dos mais diversos afirmam que o que se viu em lugares como Cinelândia e Lapa foi um show de horrores, uma série de desrespeitos aos direitos mais basilares do cidadão, um exemplo dos princípios de coerção do tal braço repressor do Estado. Num simulacro ao Estado de Direito, a ação orquestrada pelo governador do Rio de Janeiro colocou o Bope em ação, no encalço dos que voltavam pra casa, dos que aflitos seguiam em diáspora para o lar. Na tentativa de construir um cenário que simulava uma resposta aos atos de vandalismo ocorridos horas antes, distante dali, a “faca na caveira” surge como um símbolo da decrepitude de nosso tempo.

Em testemunho, o estudante Vitor Ribeiro resume o momento: “O choque sobe a rua de novo. Tiro em pessoas com as mãos para cima, bomba dentro do bar. Todos correm; eles passarão, e nós?”. A nós, restará talvez o opróbrio da situação. Combalidos, envergonhados, desapossados de nossas funções reflexivas, perplexos diante do que não poderia ser inevitável. Desnudados de nossa humanidade, isto é, de nossa importância, de nosso papel dentro do diálogo, estaremos atônitos. Já o estamos. Porém, é a partir do chão que nos movemos. Quando o cheiro da bosta se confunde ao da flor é que podemos fincar nossos “acampamentos no deserto”, construindo uma pátria que seja muitas e, como um mosaico de ideias, se torne pilar de uma realidade madura, porém jovial; verdadeira, porém múltipla; e combativa, porém serena.

“...(eu) era jovem e não podia admitir outras verdades que não as minhas, nem conceder ao adversário o direito de ter as suas, de gabar-se delas ou impô-las. Que os partidos pudessem enfrentar-se sem aniquilar-se era algo que ultrapassava minhas possibilidades de compreensão” (Emil Cioran, Carta a um amigo longínquo, 1957)


Um comentário:

Unknown disse...

Incrivelmente tocante, seu ponto de vista nao sei me assusto se me escondo ou se ainda acredito....