26 de nov. de 2010

PURGATÓRIO DA BELEZA E DO CAOS...

Vale lembrar que “todo ponto de vista é a vista de um ponto”.

A reação dos traficantes, massivamente televisionada nos últimos dias, faz parte do pacote encomendado com as últimas políticas de segurança pública no Rio. O programa de Unidades de Polícia Pacificadora parece estar cumprindo parte do seu objetivo ao ocupar os principais pontos estratégicos utilizados pelo tráfico carioca. Sufocar o crime organizado, desarticulando suas fontes de renda, faz com que a polícia e a sociedade sofram as consequências da famosa primeira lei newtoniana em que “toda ação gera uma reação”. A violência encontrada nos atos criminosos dos últimos dias visa não só pulverizar a atenção do poder público, que não tem contingente para estar em todos os cantos da cidade, mas também chocar a população. Em todo caso, essas cenas de violência reforçam a ideia de que vivemos aqui em estado de guerra ainda não declarada.

A Vila Cruzeiro é uma das ‘n’ favelas que integram o famigerado Complexo do Alemão. Diferentemente das tradicionais favelas cariocas, dispostas principalmente em encostas, a topografia da região é basicamente plana. O Rio de Janeiro tem aproximadamente seis milhões de habitantes, sendo que 400 mil deles moram num complexo de favelas que se espalha por quilômetros da Zona Norte e se desdobra em ruas, esquinas e vielas a perder de vista. Essas características fazem do Complexo do Alemão, e adjacências, a “pedra fundamental no sapato que roça o calcanhar de Aquiles”. Verdadeiro barril de pólvora, “porto-seguro do tráfico”, segundo o Secretário de Segurança José Mariano Beltrame, a região a ser controlada é estrategicamente fundamental para o êxito desse programa de segurança.

O discurso que se vê nas ruas parece ser o mesmo reportado pela grande mídia: “não é hora de voltar atrás”. Diferentemente de confrontos anteriores, dessa vez a população parece respaldar a ação da polícia, compreendendo que não existe bônus sem ônus. Entretanto, por vivermos num Estado de Direito e não mais na Ditadura, as investidas têm de ser cautelosas. Num dos momentos mais chocantes do confronto de ontem, onde traficantes escapavam pelos fundos da favela, muitos questionaram se não fora perdida uma oportunidade de fragilizar ainda mais o inimigo aniquilando muitos de seus soldados. Se o Globocop acompanhava com nitidez a fuga, por que motivo não havia nenhuma equipe da polícia para fazer a contenção dos mais de 200 fugitivos? Empregando raciocínios aplicados em táticas de guerra, algo que poucos têm capacidade de avaliar, a PM argumentou que o terreno deixaria qualquer equipe vulnerável a um eventual fogo cruzado. Além disso, a repercussão de um massacre certamente seria péssima, caso a turma do Coronel Nascimento estivesse em condições de assim proceder.

A inteligência da polícia planejou seus próximos passos ou o que estamos vendo é apenas um comportamento reativo aos crimes cometidos? Realocar chefes do tráfico para outros estados amenizará futuros ataques? A corrupção na polícia foi extirpada de uma hora pra outra? Será que as facções criminosas cariocas – Terceiro Comando, Comando Vermelho, Amigos dos Amigos etc. – vão unir as forças num contragolpe que não tardará? Muitas perguntas, poucas respostas.

Pelas ruas o clima não é dos melhores. Mesmo em localidades geograficamente distantes dos incidentes, existe uma tensão no ar. Para que algo se quebre, basta estar íntegro. Menos ônibus nas ruas, trânsito levemente menos congestionado e uma estranha sensação de viver de forma banal algo que não deve ser.

Ontem choveu muito ao final do dia, mas hoje o sol apareceu pela manhã. Se a esperança é a arte de saber esperar, talvez já se tenha esperado muito.
E segue o purgatório da beleza e do caos…

Texto publicado originalmente em http://www.bodega.blog.br/dusoto/um-relato-do-rio/

25 de jan. de 2010

CÁLCULO OU MEDITAÇÃO? - UMA REFLEXÃO SOBRE “SERENIDADE” DE HEIDEGGER

A força de um pensamento talvez não seja apenas medida pela validade de seus conceitos, mas também pela sua capacidade em operar mudanças nos paradigmas de seu tempo, influenciando gerações posteriores e recolocando questões fundamentais. Acreditando-se nessa premissa, poderíamos sugerir que a obra de Martin Heidegger, filósofo alemão do início do século XX, é central para a compreensão do pensamento contemporâneo. Seja para afirmar, seja para negar suas idéias, o certo é que um número considerável de renomados filósofos foi tocado pelas propostas heideggerianas (Jean Paul Sartre, Hannah Arendt, Emmanuel Lévinas, Jacques Derrida e Michael Foucault, só para citar alguns exemplos).

Mas o que há de tão significativo nesse pensamento? Por que seus conceitos configuram uma importante e atual janela na abordagem de problemas contemporâneos? Serenidade, texto publicado em 1955, apresenta uma crítica a um traço preponderante do mundo contemporâneo: a técnica. Nele o autor estabelece um pensamento da ordem do cálculo (pensamento calculativo) e um pensamento da ordem da reflexão (pensamento meditativo) como as possíveis posturas existenciais adotadas pelo homem moderno. No entanto, para facilitar a compreensão desse raciocínio, é necessário que retornemos aos conceitos básicos apresentados em sua obra principal: Ser e Tempo. Publicado em 1927, esta é considerada a obra-prima (e inacabada) de Heidegger, que a despeito de trabalhos e desdobramentos posteriores, continuou emulando com perseverança uma filosofia permeada por idéias inicialmente abordados em seu projeto-piloto.

A busca por uma ontologia fundamental é sem dúvida alguma o eixo que norteia as sendas filosóficas percorridas por Heidegger em Ser e tempo. Através da fenomenologia, método que herda de Husserl, o autor tenta recolocar a questão do ser, persistindo na tarefa (e justificando sua necessidade) de se refletir sobre a mesma. Para tanto, argumenta que a história da filosofia é a história do esquecimento do ser, isto é, a criação da metafísica e, posteriormente, da técnica como formas de afastamento da relação fundamental: o espanto (thauma). A perplexidade com tudo aquilo que é teria sido o motivo pelo qual o homem teria se afastado da indagação sobre o sentido do ser, erigindo um verdadeiro complexo de questões metafísicas no intuito de solapar o confronto com esse espanto – o não-ser, o nada. Se a metafísica é a filosofia primeira para Aristóteles, será a ontologia que ocupará esse lugar no pensamento de Heidegger, pois na opinião do autor somente ela poderá reinserir a questão fundamental sobre o sentido do ser - enquanto as ciências ônticas (biologia, física, matemática etc.) cuidam dos entes, cabe à ontologia cuidar do ser.

“Embora nosso tempo se arrogue o progresso de afirmar novamente a ‘metafísica’, a questão aqui evocada caiu no esquecimento (...) No solo da arrancada grega para interpretar o ser, formou-se um dogma que não apenas declara supérflua a questão sobre o sentido de ser, como lhe sanciona a falta. Pois se diz: ‘ser’ é o conceito mais universal e mais vazio. Como tal, resiste a toda tentativa de definição. Esse conceito mais universal e, por isso, indefinível, prescinde de definição” (HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Ed. Vozes. Pág. 37).

Tudo que é é ente e, sob esse prisma, só podemos falar do ser das coisas através dos entes. No entanto, o ser não pode ser entificado, uma vez que pensar o ser é também pensar o nada, logo, o não-ser. A azulidade do céu azul, bem como a redondidade da esfera, seria o próprio ser se insinuando através dos entes sem esgotar suas possibilidades de manifestação – o ser é a estrutura e não o conjunto de entes. Como “sempre nos movemos numa compreensão de ser”[1], é provável que exista algum ente específico que tenha o privilégio de se relacionar com ele. Mas o que é, afinal, ser? Já que a lógica nos impele a responder “x é y” nos deslocando para o âmbito dos entes, torna-se necessário uma mudança de padrão, uma quebra de paradigma para responder a essa pergunta.

Heidegger acredita que a questão sobre o sentido do ser pode ser elucidada (ou ao menos tangenciada) se for devidamente formulada, i. e., direcionando-se o que é questionado (o ser) e o que é perguntado (a questão do ser) ao interrogado por excelência: o Dasein. Traduzido como “ser-aí”, o Dasein também é chamado de presença e pode, grosso modo, ser entendido como homem – essa referência é quase óbvia, pois dentre todos os entes, somente o homem pensa e se relaciona com o ser. E é no Dasein onde se revela o privilégio na busca pela questão do ser, pois enquanto em outros entes encontramos essência, na presença encontramos apenas abertura às possibilidades infinitas de ser - Dasein é projeto sempre inacabado.

Essa abertura é nossa característica, nossa marca, nossa sina. Ela corrobora com o que Heidegger chama de “queda” (Verfall), conseqüência direta do processo de afastamento da questão fundamental – a questão do ser - e define, paradoxalmente, nossa impossibilidade em pensar o ser com exclusividade. Em seus diversos modos de ser o Dasein se depara com situações em que pensa o trivial, o banal e o corriqueiro, numa postura distante da que seria exigida na reflexão fundamental. Logo, Dasein também é esquecimento que não esquece só as indagações profundas, mas que se esquece ao não deixar o pensamento ser pensamento, isto é, ser abertura. Serenidade, portanto, é esse “deixar ser” enquanto princípio básico da filosofia, onde o pensador não se coloca como sujeito do conhecimento, mas como veículo desse fenômeno, desse acontecimento.

“Todos nós, inclusive aqueles que pensam como que por dever profissional, todos nós somos muito freqüentemente pobres em pensamento; todos nós, com demasiada facilidade, somos sem pensamento (...) A ausência de pensamento é um estranho convidado que se insinua hoje por toda a parte no mundo. Pois lidamos atualmente com tudo do modo mais rápido e econômico, apenas para esquecê-lo instantaneamente no momento seguinte” (HEIDEGGER, Martin. Serenidade).

A preocupação de Heidegger com o mundo contemporâneo, quer dizer, com o modo como o homem se torna cada vez mais dependente da técnica, é proveniente dessa “ausência de pensamento”. A escassez de reflexões mais profundas, calcadas em questões não somente relacionadas ao dever, somente parecem fortalecer essa hegemonia tecnológica e objetiva. Mas se somos seres dotados de razão, isto é, se em nossa essência reside uma natural capacidade para pensar, então existe a possibilidade para o “não-pensar”. É somente porque a luz se acende que ela pode se apagar. É somente porque uma estrutura está intacta que ela pode se corromper. É somente porque estamos vivos que podemos morrer. É somente porque pensamos que podemos não pensar (ou pensar de maneira superficial, pobre e objetiva).

“Assim como só podemos nos tornar surdos porque ouvimos, assim como só podemos envelhecer porque fomos jovens; assim podemos nos tornar pobres em pensamento ou mesmo sem pensamento apenas porque o homem no fundo de seu ser tem a capacidade de pensar, tem "espírito e razão", é destinado a pensar” (HEIDEGGER, Martin. Serenidade).

A esse pensamento “empobrecido” é que Heidegger vai chamar de pensamento calculativo: um pensamento que visa somente a resolução de problemas objetivos, que não é livre para “pensar a si mesmo”, como na definição aristotélica de Deus (o pensamento supremo). Reiterando a idéia outrora exposta em Ser e tempo, o autor nos convoca à nossa condição de seres caídos ao enfatizar o caráter imprescindível da presença do pensamento calculativo em nossa cotidianidade, alertando, no entanto, que tal presença é apenas um vértice (mais opaco e atrofiado) das muitas possibilidades que integram o constructo de nossa existência.

“Tal pensamento permanece imprescindível. Mas também permanece o fato de que esse é um pensamento de tipo singular. Sua singularidade consiste em que sempre que planejamos, pesquisamos e organizamos, sempre contamos com condições que são dadas. Levamo-nas em conta com a intenção calculada de servirem a objetivos específicos. Assim podemos contar com resultados definidos. Esse cálculo é a marca de todo pensamento que planeja e investiga. Tal pensamento permanece cálculo mesmo quando não trabalha com números, nem usa máquina de calcular ou computador. O pensamento calculativo calcula” (HEIDEGGER, Martin. Serenidade).

Cerceado de seu impulso original, que é o de trilhar caminhos de forma errante, o pensamento tornar-se-ia calculativo, sendo impelido e destinado a ocupar-se dos comos ao invés de investigar, como alternativa mais profícua, os porquês – fundamento do exercício filosófico. Como diria Julio Pinto num ensaio sobre semiótica: “A tecnologia da informação (...) tem os comos, mas não sabe o que é relevante. A comunicação, ao contrário, pode ser pensada – e, infelizmente, muitas vezes não o é – como aquilo que identifica as relevâncias não só por meio dos comos, mas principalmente através dos porquês. Porque a comunicação não é um processo binário, mas um processo que levanta as dúvidas relevantes e as trabalha e procura interpretá-las”²[2]. Sob essa ótica, a tecnologia da informação estaria para o pensamento calculativo, assim como a comunicação estaria para a filosofia ou, em termos heideggerianos, para o pensamento meditativo.

Sendo o pensamento calculativo um pensamento da ordem da objetividade e, por conseguinte, limitado a determinadas condições de ordem prática, não seria exagero supor que trata-se de um pensamento mais acessível – e certamente mais solicitado – numa sociedade que enxerga o mundo (e a natureza) como fundo de reserva. “A natureza torna-se um gigantesco reservatório, uma fonte de energia para a técnica e para a indústria”[3], confirma Heidegger em Serenidade. E nesse movimento intenso é que o pensamento meditativo, tão necessário para a experiência da abertura (da alteridade e das possibilidades), vai sendo solapado. Cai no esquecimento.

“Assim, em julho deste ano na Ilha de Mainau, dezoito vencedores do prêmio Nobel afirmaram: ‘a ciência – isto é, a moderna ciência da natureza – é um caminho para uma vida humana mais feliz’. O que acontece nessa afirmação? Surge ela da meditação? Pensa ela o sentido da era atômica? Não. Pois se aceitamos como satisfatória essa afirmação da ciência, permanecemos tão distanciados quanto possível de uma meditação sobre nossa época. Por quê? Porque esquecemos de meditar. Porque esquecemos de perguntar: de onde provém a possibilidade de a técnica científica descobrir e liberar novas energias na natureza? ” (HEIDEGGER, Martin. Serenidade).

A crença obtusa na técnica, sob a ótica heideggeriana, representa a persistência no erro metafísico elevado a um nível mais potente e prejudicial. Se o desdobramento natural do pensamento grego clássico, em nome de uma verdade catapultada para outro mundo, havia estabelecido um primado metafísico, não era necessário realocar essa “verdade” para outro solo: o da técnica. Podemos (e devemos) estabelecer uma relação equilibrada com essa força contemporânea, sem deixar que a mesma ofusque o brilho de nossa natural capacidade para pensar. Seguir por esse caminho, com os olhos vendados, a boca tapada e os ouvidos cheios de cera, seria comprometer nossa essência, nosso dever, nossa verdade. “Não paramos para pensar que está sendo preparado um ataque com meios tecnológicos à vida e ao ser do homem, diante do qual a explosão da bomba de hidrogênio pouco significa”[4], alerta o autor.

E se a proposta é cuidar do pensamento, logo, de nós mesmos, trata-se de perceber que o que foi exposto por Heidegger em Serenidade pode ser interpretado como uma continuação e uma atualização das idéias apresentadas em Ser e Tempo, isto é, a preocupação com o pensamento. Se somos seres caídos, é natural que sejamos supérfluos, objetivos e banais. No entanto, sendo seres de razão, também temos o dever de agir com a nossa propriedade e pensar, calculativa e meditativamente, promovendo uma mudança na postura do homem na sua relação com a técnica e seus dispositivos de entorpecimento. É necessário, então, adotar uma atitude reflexiva diante do que se coloca como um caminho inevitável. Uma “atitude de um simultâneo Sim e Não para com o mundo técnico através de uma velha palavra: serenidade para com as coisas (...) Serenidade para com as coisas e abertura para o mistério pertencem-se mutuamente” - princípios que podem nos ajudar a configurar um quadro tão produtivo, mas menos angustiante e, quem sabe, mais estimulante em nossa contemporaneidade.

BIBLIOGRAFIA
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes, 2007.
HEIDEGGER, Martin. Serenidade. Tradução: Tito Marques Palmeiro.
PINTO, Julio. O ruído e outras inutilidades – Ensaios de comunicação e semiótica. Belo Horizonte: Autêntica, 2002

[1] HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. [2] PINTO, Julio. O ruído e outras inutilidades – Ensaios de comunicação e semiótica. [3] HEIDEGGER, Martin. Serenidade. [4] HEIDEGGER, Martin. Serenidade.