31 de ago. de 2009

O PRESENTE LEGADO - A EXISTÊNCIA PELO PRISMA DAS PALAVRAS

“O essencial é vivido na presença, as objetividades no passado” (Martin Buber)

O presente trabalho foi realizado no intuito de mostrar a relação indissociável entre Existência e Palavra, componentes que parecem fundamentar nossa participação no mundo. A Grécia Arcaica, que se estende dos séculos IX a.C. ao VI a.C., guarda uma importante herança para a compreensão dessa história no pensamento ocidental. O conhecimento que nos foi legado pelos antigos gregos diz respeito à nossa relação com as palavras e, conseqüentemente, com os entes e sua presença – realidades que plasmaram a cultura helênica nas fases do Mito e do Logos, perdurando, ainda que de maneira inconsciente, até os nossos dias. Se acreditarmos, por exemplo, que a existência se revela na experiência dialógica, ou seja, no aspecto relacional da vida, temos de concordar que, para tanto, é necessário que haja comunicação. Esta, por sua vez, se apresenta via linguagem e acompanha não só o homem, mas todos os seres que estabelecem algum tipo de interatividade entre si. Em cada pequeno gesto há o ato de comunicar. “O mundo dos significados não é outro senão o da linguagem”, diz Roland Barthes em Ensaios de Semiologia.

Se hoje participamos do fenômeno Sociedade da Informação (ou da Comunicação), é porque em algum momento a história humana adentrou ao recinto da Palavra, isto é, dos processos de significação. E, para que essa empresa tivesse sucesso, um dos primeiros estágios da compreensão humana sobre o mundo ocorreu na relação com o mito. Jaa Torrano, sobre a importância da vivência mítica, classifica o mito como “a experiência do Sagrado”, descrevendo a linguagem como “objeto de uma experiência numinosa”. Ao participar de um culto a Dionísio, por exemplo, o grego não se deparava somente com interpretações e atuações de outros gregos (o lado meramente teatral do evento), mas confrontava-se, antes, com o próprio deus encarnado.

“A linguagem é, neste caso, a linguagem do aedo, i.e., a canção – uma canção que ao mesmo tempo é veículo de uma concepção do mundo e suporte de uma experiência numinosa”(TORRANO, Jaa. Teogonia – a origem dos deuses. Ed. Iluminuras. Pág. 14).

Tal experiência, no entanto, passa a fazer sentido somente se levamos em conta o papel preponderante das Musas (Mousai), que com sua numinosa presença autorizavam os poetas (aedos) a cantar os entes, trazendo à luz o que estava esquecido e levando ao mundo do esquecimento o que não se queria desvelar - as Musas, filhas de Zeus e Memória (Mnemosyne), diziam tanto mentiras parecidas com verdades, quanto verdades. A relação desse poder com a palavra alethéia (desvelamento, verdade) é evidente, pois somente as Musas, testemunhas oculares dos eventos, estavam habilitadas a cantar - contar e reviver - os fatos. Eram elas: Glória, Alegria, Festa, Dançarina, Alegra-coro, Amorosa, Hinária, Celeste e Belavoz, que vinha à frente das irmãs.

“O poeta, portanto, tem na palavra cantada o poder de ultrapassar e superar todos os bloqueios e distâncias espaciais e temporais, um poder que só lhe é conferido pela Memória (Mnemosyne) através das palavras cantadas (Musas). (...) Portanto, o canto (as Musas) é nascido de Memória (num sentido psicológico, inclusive) e do mais alto exercício do Poder (num sentido político, inclusive)” (TORRANO, Jaa. Teogonia – a origem dos deuses. Ed. Iluminuras. Pág. 16).

Cumpre-se aqui fazer uma pequena, porém importante, distinção entre os períodos arcaico e clássico da Grécia: No primeiro observamos uma maior preocupação com a utilização da narrativa, da alegoria e da imagem – traços que ajudam a compor o mito, estabelecendo uma noção de verdade com ênfase na memória – crer para ver. No período seguinte, se estabelecesse o primado da razão, do logos, do discurso, onde a verdade filosófica, impulsionada pelo advento da escrita, torna-se uma verdade epistemológica - o “ver pra crer”. Em suma, a verdade filosófica está mais para a adequação da mente com a coisa (adaequatio rei ad intellectus), enquanto sua precedente lida com uma verdade axiológica (axios = valor).

“Com os pensadores a linguagem põe-se a caminho de tornar-se abstrato-conceitual, racional, hipotátíca e desencarnada (na perfeição do processo, o nome se torna um signo convencionado para a coisa nomeada)” (TORRANO, Jaa. Teogonia – a origem dos deuses. Ed. Iluminuras. Pág. 17).

Logo, a verdade mítica é mediada pela psicagogia no fruidor, via processo de catarse, i.e., de comoção, de “mover-se junto ao acontecimento”. Ao ouvir o canto do aedo, o espectador era imediatamente transportado para a presença das Musas, vivenciando e comovendo-se com os eventos por elas desvelados. A relação entre mito e realidade era tão amalgamada que, antes do canto, o aedo pedia às Musas que o autorizassem a cantar (e contar), como se observa no Proêmio às Musas, primeiro trecho da Teogonia de Hesíodo: “Pelas Musas heliconíades comecemos a cantar”. Mediante tal fato é que o professor Marcus Reis pode afirmar que “uma análise psicologizante do mito na Grécia é, no mínimo, anacrônica”, visto que muitos dos conceitos abordados pela psicologia só foram concebidos muitos séculos depois – a dimensão moderna de subjetividade no ser humano, por exemplo, só começa a ser pensada na Modernidade com René Descartes.

É ainda válido recordar que, sendo oral ou escrita, a linguagem é palavra, e que esta sempre tem por meta presentificar os objetos no discurso, pois, quando proferidas, solicitam instantaneamente suas significações. E o homem é um ser de significação, procurando sentido em tudo que o rodeia, e é nesse processo, no qual deparamo-nos com a presença das coisas no gerúndio da ação, onde se desvela a totalidade e o compromisso com o agora. Seja futuro, presente ou passado, é no agora que emana e se apresenta o constructo da existência. E ainda que a escrita seja tirana, limitando, ferindo e cerceando as possibilidades de ser, ela sinaliza essa incapacidade, pois as possibilidades de ser jamais se esgotam.

Um biólogo, com o conhecimento que lhe cabe, dá a primeira e a última palavra sobre uma árvore qualquer. Um botânico, por sua vez, também fará o mesmo, mas de maneira diferente, uma vez que sua formação incute-lhe uma análise distinta da primeira. Nosso vegetal lenhoso, ao sofrer o exame de um mestre-carpinteiro, verá sua predicabilidade enriquecida, uma vez mais. Ora, o que se apresenta, com ares de ser parmênídico, nada mais é do que a persistência do ser dos entes em seu caráter inesgotável e permanente - e não há espanto em constatar que o Ser de Parmênides é analisado via logos, ou seja, palavra. Palavra, para Merleu-Ponty, é “o tecido do pensamento”, e tal assertiva se baseia no fato de que a linguagem faz a mediação entre nós e o mundo ao categorizar todas as nossas experiências através da combinação das letras, da normatização dos usos e das, aparentemente, infinitas possibilidades de sentido.

“São três as esferas nas quais o mundo da relação se constrói. A primeira é a vida com a natureza onde a relação permanece no limiar da linguagem. A segunda esfera é a vida com os homens onde a relação toma forma de linguagem. A terceira é a vida com os seres espirituais onde a relação embora sem linguagem gera a linguagem (...) todas são portas na presença da Palavra” (BUBER, Martin. Eu e Tu. Ed. Centauro. Pág. 118).

Ainda que não seja do intuito desse artigo analisar situações aquém (natureza) ou além (mundo espiritual) da linguagem, podemos prosseguir no raciocínio de Buber e complementá-lo com uma ressalva: mais do que aquém e além da linguagem, a existência se dá na linguagem. Descartes, em suas Meditações, parece reiterar esse raciocínio ao afirmar que “as palavras me contêm”. Portanto, o que se configura é uma certeza, ainda que contingente, de que se a existência se dá na linguagem, ela ocorre nos processos de significação, logo, nas palavras.

Quando sentimos um vazio inexplicável, uma sensação de tristeza profunda, um pesar arrebatador, nossa razão tenta apreender esse acontecimento, essa presença - apreender para compreender. Ao mover-se na direção de tal apreensão, a mente tenta explicar utilizando-se das ferramentas que possui para objetificar as coisas, ou seja, utilizando-se da nomenclatura, i.e., da estrutura da palavra que, bem como a linguagem, necessita de definição e de regulamentação para que o sentido se dê. A idéia implícita contida nesse princípio é a de que, para nos comunicar com uma base mínima de entendimento, é necessário que a mente, em seu movimento de significação, exerça uma atividade fundamental: repertorizar (arquivar, armazenar, organizar) as coisas como objetos. Quando pagamos contas num banco, declaramos sentimentos ocultos à pessoa amada, assistimos a um filme ou buscamos entender o motivo de uma tristeza qualquer, estamos diante do primado da Linguagem e da Palavra, e é nesse contexto onde nossa realidade se molda. Uma dor nunca seria compreendida como tal se já não estivesse repertorizada em nossa mente, segundo a mediação da seqüência de sons d-o-r, com uma determinada experiência sofrida anteriormente - base de referência nesse procedimento de distinção e identidade. No entanto, tal procedimento não é tão preciso quanto parece, visto que o sentido das coisas é relativo e incerto, o que proporciona, paradoxalmente, certa poesia e hermetismo em nossas vidas.

“E as palavras falam do que é real e do que não é real, apresentando-os quando e como elas querem. As Palavras falam tudo, elas apresentam o mundo (...) nas Palavras reside o ser. Esta imbricação recíproca de linguagem e ser não é senão a recíproca imbricação de linguagem e poder” (TORRANO, Jaa. Teogonia – A origem dos deuses. Ed. Iluminuras. Pág. 30).

A grande maioria das enciclopédias e livros de História Geral aceita que a escrita surgiu como etapa posterior à fase oral nas sociedades antigas, ou seja, como conseqüência da capacidade de raciocínio, de síntese e da necessidade de normatização das relações humanas. No período Neolítico, isto é, na Idade da Pedra, a transmissão oral era suficiente para suprir as demandas comunicacionais existentes em um determinado grupo. Com o advento da agricultura, ocorreu o crescimento e o estabelecimento de determinadas populações num mesmo local, o que proporcionou um aumento no nível de complexidade das funções exercidas na sociedade. Esses fatores, ao mesmo tempo em que solicitavam, estimulavam um modelo de comunicação que pudesse prover de forma mais objetiva e eficaz uma comunicação social, um modelo que tentasse retratar com o máximo de fidelidade a realidade, as coisas da vida: a escrita.

Inicialmente cunhada com o intuito de mensurar a largura de canais, a altura das paredes nos templos, a quantidade de cereais estocados, ou seja, como notação precisa das informações necessárias à sobrevivência de dada população, a escrita emergiu em sua forma pictórica na Suméria, atual sul do Iraque, aproximadamente em 3.500 a. C. O pictograma foi a primeira versão da escrita cuneiforme, que mais tarde evoluiu para o ideograma, e posteriormente para a escrita silábica. Para falar de determinado objeto bastava traçar determinada figura, convencionada consensualmente pelo grupo. Estava iniciada uma nova era na comunicação do homem com o mundo, uma nova etapa na relação do homem com o simbolismo das palavras. E é na transição do mito ao logos onde devemos fixar atenção, pois lá encontramos um precioso fundamento de nossa concepção sobre a realidade – somos seres de linguagem e este é nosso horizonte de possibilidades e limitações. A procura por entendimento e identidade parece um exercício sem fim, porém, uma finalidade existencial que só depende da presença numinosa das palavras.

BIBLIOGRAFIA
BARTHES, Roland. Elementos de semiologia. São Paulo: Cultrix, 2006.
BUBER, Martin. Eu e Tu. São Paulo: Centauro, 2006.
DESCARTES, René. Meditações. Coleção “Os Pensadores”. São Paulo: Nova Cultural, 1999.
MORA, José Ferrater. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
REALE, Giovanni. História da Filosofia – Vol. I. São Paulo: Loyola, 2008.
TORRANO, Jaa. Teogonia – A origem dos deuses. São Paulo: Iluminuras, 2007.

2 de jun. de 2009

NOS APRIORISMO DO SUJEITO - A NOÇÃO DE TEMPO E ESPAÇO EM KANT

“Parece-me, pois, que quem sabe alguma coisa sente o que sabe. Assim, o que se me afigura neste momento é que conhecimento não é mais do que sensação” (Platão, Teeteto)

A vida é permeada por diversos fenômenos e, dentre todos que nos chegam, talvez sejam as noções de espaço e tempo as que mais fundamentam nossa existência e nossos processos de percepção, grosso modo, de estruturação do conhecimento. Nisso acreditava Kant, que definia ambos os conceitos como as duas formas de conhecimento sensível a priori, isto é, os dados sem os quais seria impossível conhecer. Percebendo as coisas durando no tempo e dispostas no espaço, parece que estamos diante do movimento primeiro da existência. E foi no intuito de abordar as noções kantianas de tempo e espaço, bem como ressaltar a importância das mesmas no pensamento do filósofo alemão, é que o presente trabalho foi feito.

A filosofia sempre teve por fundamento a preocupação com o conhecimento. Desde seu surgimento, com o pensamento pré-socrático, essa é uma de suas principais características. Como distinguir a verdade de meras ilusões? Como estabelecer critérios que auxiliem essa empresa? Onde encontrar respostas que deem conta da totalidade do mundo?, são algumas das questões propostas pela filosofia. Mas esse saber filosófico não é somente técnico e se volta mais ao enfoque teórico sobre o conhecimento do que ao saber prático do mesmo. Esse momento é comumente descrito como a fase de transição do Mito ao Logos, responsável por instaurar em definitivo o primado filosófico grego, na qual os esforços passam a convergir para a busca de respostas calcadas na razão. O conhecimento, antes encontrado nas divindades míticas (Hesíodo e Homero), é transferido à natureza (Tales, Anaxímenes, Leucipo etc.) e, em seguida, ao próprio homem (Sócrates e os sofistas), emulando uma espécie de declínio das fontes de conhecimento ao plano físico e uma ascensão do próprio conhecimento ao plano metafísico. Esse paradoxo, de fato, apenas atesta a aptidão natural do homem na busca pelo conhecimento.

“Todos os seres humanos naturalmente desejam o conhecimento. Isso é indicado pelo apreço que experimentamos pelos sentidos (...)” (ARISTÓTELES. Metafísica. Ed. Edipro. Pág. 43).

A metafísica (ou filosofia primeira segundo Aristóteles), desde os primórdios, busca uma dimensão para além do mundo sensível e inteligível, catapultando a verdade para um mundo apriorístico e inato, um mundo transcendental. Talvez o primeiro grande exemplo disso seja a teoria platônica das formas, que estabelece que o mundo sensível não é fonte de conhecimento confiável. Para se alcançar o verdadeiro conhecimento seria necessário buscar o Mundo das Idéias (ou Formas), que se localiza muito além das aparências, numa concepção (e preocupação) marcadamente metafísica – o próprio Aristóteles, porém, critica essa cisão platônica. É certo que esse movimento errante, característico do pensamento filosófico, que ora estabelece um mundo sensível e ora um mundo supra-sensível como matriz do conhecimento, foi o que permitiu o desenvolvimento de conceitos e o surgimento de análises mais profundas sobre a própria filosofia. Para ilustrar, podemos recorrer ao já citado núcleo dos pré-socráticos, que em seu longo percurso admitiu um mosaico de elementos (água, terra, fogo, ar, amor, discórdia, apeiron etc.) como o princípio, a causa incausada, a arché.

Se por um lado, a metafísica aponta para uma dificuldade em se precisar o saber, revelando-o como contingente e válido somente para determinadas épocas e critérios, por outro, ela permite que haja a flexibilização de seus próprios conceitos. Quando a Modernidade aponta como a salvação de todos os males da humanidade, trazendo uma mensagem otimista e anunciando os novos tempos, ela fixa seu discurso no determinismo das ciências – e o mesmo ocorre com o Iluminismo. Estas, por sua vez, revelam maestria ao lidar com situações controladas (e controláveis), porém, ao deslocar seus conhecimentos para o mundo, o quadro muda. Se desejo aquecer 100 mililitros de água à temperatura de 37 graus Celsius, a tarefa se torna fácil num laboratório. Mas se desejo fazer a mesma experiência em campo aberto, é preciso contar com uma vasta gama de fatores externos que fogem totalmente ao meu controle. E assim também é a vida humana, que mais semelhante ao segundo caso, coloca diversas variáveis em pauta - basta constatarmos a dificuldade da tarefa ética para determinar modelos absolutos.

“Se a elaboração dos conhecimentos pertencentes ao domínio da razão segue ou não o caminho seguro de uma ciência, isso deixa-se julgar logo a partir do resultado (...) tal estudo acha-se ainda bem longe de ter tomado o caminho seguro de uma ciência, constituindo-se antes um simples tatear (...)” (KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura – Coleção “Os Pensadores. Ed. Nova Cultural. Pág. 35).

Com a idéia do cogito cartesiano, o pensamento filosófico passa a trabalhar com um conceito de subjetividade altamente intenso. Distinto de qualquer outra época da história, o conhecimento agora se instala na subjetividade humana, reacendendo o debate sobre as origens do conhecer. No entanto, e cada vez mais, as ciências foram se distanciando das questões humanas, voltando-se para questões de ordem objetiva. Onde estava a redenção prometida pela Modernidade e pelo Iluminismo? Por que motivo era constatado o avanço vertiginoso das ciências exatas e uma dificuldade em se aplicar o pensamento ético? Qual a importância da filosofia? O que fazer com a metafísica? Essa foi a preocupação de Kant que, notando esse desequilíbrio, decidiu empreender uma filosofia que pudesse analisar quais eram, de fato, as possibilidades reais de conhecimento. No Prefácio à Segunda Edição da Crítica da Razão Pura, obra fundamental para a compreensão do pensamento do filósofo, lê-se:

“A Metafísica, um conhecimento da razão inteiramente isolado e especulativo que através de simples conceitos (não como a Matemática, aplicando os mesmos à intuição), se eleva completamente acima do ensinamento da experiência , na qual portanto a razão deve ser aluna de si mesma, não teve até agora um destino tão favorável que lhe permitisse encetar o caminho seguro de uma ciência, não obstante ser mais antiga do que toda as demais e de que sobreviveria mesmo que as demais fossem tragadas pelo abismo de uma barbárie que a tudo exterminasse” (KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura – Coleção “Os Pensadores. Ed. Nova Cultural. Pág. 38).

Já que as ciências existem, como devem ser o sujeito do conhecimento e o objeto conhecido para que haja conhecimento? Se para Descartes, o objeto é o que tenho ou em mente ou fora dela, para o pensamento kantiano, o objeto é uma soma de cognições, sendo sintetizado ao final de um processo. Kant parte da idéia de que o sujeito está fadado a sensibilizar-se a partir do dado externo, mas que só há produção de conhecimento com a participação direta do sujeito cognoscente, isto é, o objeto se regula pela faculdade de conhecer do sujeito – princípios a priori que sintetizam os dados da experiência. “Etimologicamente, faculdades são poderes de realizar algo, são forças cognitivas”, esclarece a professora Rosana Suarez. Dentre as faculdades apresentadas por Kant, é a faculdade da sensibilidade (e afecção sensível) a que mais interessa a este trabalho, uma vez que é lá que encontraremos as definições de tempo e espaço.

Na Estética Transcendental, primeira parte da Crítica da Razão Pura, Kant explica que o modo ao qual “todo pensamento como meio tende, é a intuição”, e que esta “só ocorre na medida em que o objeto nos for dado”. Esta capacidade de obter representações é chamada de sensibilidade e “apenas ela fornece intuições”, elementos com característica instável que necessitam da abordagem do entendimento. Este, por sua vez, é a faculdade pela qual “os objetos são pensados e dele se originam conceitos”. Mas vamos nos ater somente à primeira etapa: a faculdade da sensibilidade, responsável pela produção da sensação, mediante implicação de determinado objeto. A intuição referente ao “objeto mediante sensação denomina-se empírica” e o “objeto indeterminado de uma intuição empírica denomina-se fenômeno”. A sensação do fenômeno relaciona-se com a matéria, e o que possibilita seu ordenamento é a forma, ou seja, enquanto a matéria nos é dada a posteriori, a forma está à disposição a priori, separada de toda sensação. Resumidamente, a sensibilidade, pura receptividade, é um campo que recebe e conforma o material, e suas formas puras (inatas e inconscientes) são espaço e tempo, que são independentes da experiência sensível. É como se nossa capacidade de conhecer tivesse início com modelos básicos de estruturação do conhecimento (tempo e espaço), que já estão inseridos em nosso aparato perceptivo, não necessitando de nenhum tipo de regulação posterior.

“Denomino puras (em sentido transcendental) todas as representações em que não for encontrada nada pertencente à sensação (...) Essa forma pura de sensibilidade também se denomina ela mesma intuição pura (...) Denomino estética transcendental uma ciência de todos os princípios da sensibilidade a priori (...) há duas formas puras da intuição sensível, como princípios do conhecimento a priori, a saber, espaço e tempo” (KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura – Coleção “Os Pensadores. Ed. Nova Cultural. Pág. 72).

Kant define o espaço como o sentido externo que nos representa os objetos como fora de nós. Já o tempo é definido como o sentido interno onde a mente consegue intuir a si mesma, de modo a tudo representar em relação ao tempo. “O tempo não pode ser intuído externamente, tampouco quanto o espaço como algo em nós”, alerta o filósofo. Os fragmentos abaixo, retirados da Estética Transcendental, servem para ilustrar ambos os conceitos:

Espaço

1) O espaço não é um conceito empírico abstraído de experiências externas (...) esta própria experiência externa é primeiramente possível só mediante referida representação;
2) O espaço é uma representação a priori necessária que subjaz a todas as intuições externas (...) Ele é, portanto, considerado a condição de possibilidade dos fenômenos;
3) O espaço não é um conceito discursivo ou, como se diz, um conceito universal de relações das coisas em geral, mas sim uma intuição pura (...) O espaço é essencialmente uno;
4) O espaço é representado como uma magnitude infinita dada (...) A representação originária do espaço é, portanto, intuição e não conceito.
Tempo
1) O tempo não é um conceito empírico abstraído de qualquer experiência;
2) O tempo é uma representação necessária subjacente a todas intuições (...) O tempo é portanto, dado a priori. Só nele é possível toda a realidade dos fenômenos;
3) Sobre essa necessidade a priori também se funda a possibilidade de princípios apodíticos das relações de tempo, ou de axiomas do tempo em geral. Ele possui uma única dimensão: diversos tempos não são simultâneos, mas sucessivos (assim como diversos espaços não são sucessivos, mas simultâneos);
4) O tempo não é um conceito discursivo ou, como se diz, um conceito universal, mas uma forma de intuição sensível;
5) A infinitude do tempo nada mais significa senão que toda magnitude determinada do tempo só é possível mediante limitações de um tempo subjacente.
(KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura – Coleção “Os Pensadores. Ed. Nova Cultural. Pág. 75 à 78).


Ao conceber essas formas de intuição, Kant termina por inaugurar uma nova etapa no pensamento moderno, pois ao resgatar as possibilidades de conhecimento ele acaba por estabelecer os limites do mesmo; característica que parece apontar para a necessidade de se adotar uma postura mais criteriosa e relativista nos campos do saber. Se o conhecimento, que é mediado por uma série de cognições (faculdades), faz a exigência de formas a priori para se estabelecer, é porque ele não faz julgamento de subjetividades, mas se coloca, ao contrário, antes delas. E essa premissa, ainda que de maneira velada, recupera a dignidade humana, recolocando a questão sobre a capacidade de conhecer sob uma ótica mais democrática – e certamente mais bem distribuída do que o bom senso cartesiano. E se fazer metafísica é perscrutar o sujeito humano para além de suas fronteiras, para além de subjetividade e objetividade, então Teeteto estava parcialmente certo, pois o conhecimento não está somente nos sentidos. O conhecimento é simultaneamente aquém e além de nossa capacidade de conceituar. O conhecimento é um estado e não um lugar.

BIBLIOGRAFIA

ARISTÓTELES. Metafísica. São Paulo: Edipro, 2006.
KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Coleção “Os Pensadores”. São Paulo: Nova Cultural, 2005.

13 de abr. de 2009

ENTRE A TÉCNICA E A ABERTURA: UMA REFLEXÃO SOBRE A ARTE CONTEMPORÂNEA

“A arte dos nossos dias tem por finalidade servir de objeto ao pensamento (...) a arte cultiva o humano no homem” (G. W. F. Hegel).

A clássica pergunta o que é a arte?, atualizada para nossos dias, poderia ser o que é arte? ou, de maneira mais objetiva, o que é uma obra de arte? Grafismos virtuais, plásticas elásticas, aparelhos com botões para distanciar e aproximar vidas, pequenas grandes coqueluches ornamentais e híbridos portáteis, são algumas das características do montante que circunscreve e, somente por vezes, integra o que chamamos de arte – somente por vezes, pois muitas coisas nos chegam como objeto artístico não passando de mera (re)produção industrial. Logo, não seria exagero dizer que a arte contemporânea é um gigantesco e complexo caleidoscópio de possibilidades, que abarca desde o tipo de material utilizado na obra às leituras e interpretações da mesma - podemos observar esse mosaico aspecto na música, na pintura, na poesia e em muitos outros gêneros artísticos.

A arte, enquanto importante eixo de relações de identidade e cultura nas sociedades, sempre está a reciclar suas estruturas e valores, garantindo uma constante discussão sobre quais noções norteiam a própria definição de arte. E independente de qual seja a resposta sobre seu horizonte, o certo é que a arte nos insta sempre que se apresenta: despertando um sentimento de repulsa, diluindo-se numa massa informativa qualquer ou possibilitando uma singular experiência estética. A arte tem natureza mutante, é o próprio devir, é o thauma (espanto) pulverizado nas searas da existência. Via obra, ela solicita, afasta, encanta e, para muitos, reconduz aos verdadeiros trilhos do saber filosófico.

“Esta situação acentua-se no pensamento de Merleau-Ponty: ‘como poderá então – pergunta-se o filosofo – uma coisa apresentar-se verdadeiramente a nós, já que a síntese nunca se completa’... Essa ambigüidade não é uma imperfeição da existência ou da consciência, mas é sua própria definição... a consciência, que passa por ser o lugar da clareza, é , ao contrario, o próprio lugar do equívoco (...) propondo ao artista, assim como ao filosofo e ao psicólogo, afirmações que não podem deixar de ter uma função de estimulo à sua atividade formativa: é portanto essencial à coisa e ao mundo apresentarem-se como “abertos”....prometer sempre “algo mais a ver” (ECO, Humberto. Obra aberta. Ed. Perspectiva. Pág. 59).

Na tentativa de delinear suas características, poder-se-ia dividir a arte em três momentos: das poéticas clássicas, onde a análise se concentra na obra; das estéticas modernas, com o foco no receptor; e o momento das estéticas do artista, que valoriza o estado criador. No primeiro estágio a arte era constituída por doutrinas normativas, preocupando-se, mormente, com as técnicas de produção - Como construir uma tragédia? Como reproduzir uma epopéia? Quais as características de um poema lírico? Essa fase tem como alicerce a mimese (imitação), que compreende a produção artística como cópia de situações reais e/ou um mero saber voltado para a práxis (prática) – se necessito de um objeto para descansar minhas pernas, construo uma cadeira; se preciso atravessar um rio, faço uma ponte. E a própria noção de poesia remete ao ato de pôr algo no âmbito do ser, ou seja, criar.

Autoridade no assunto, Aristóteles, em concordância com suas produções filosóficas, foi o primeiro a escrever uma obra que normatizava e categorizava os diferentes gêneros de poesia (poiesis). Na Poética, o estagirita esmiúça técnicas para a composição de tragédias, epopéias, ditirambos, dentre outros, fundamentando um importante legado prático-teórico sobre a arte. “A tragédia é imitação de uma ação em sua totalidade”, “Essas são as duas partes da fábula: a peripécia e o reconhecimento” e “Os episódios, nos dramas, devem ser breves; diferentemente do que sucede na epopéia” são algumas das definições encontradas nessa obra. Sobre a relação entre arte e técnica, diz-nos Martin Heidegger:


“(...) os gregos denominavam tanto a arte quanto o artesanato com a mesma palavra: tekné; e, de maneira correspondente, o artesão e o artista com o termo tekníthes"” (HEIDEGGER, Martin. Nietzsche – volume I. Ed. Forense Universitária. Pág. 74).


Ainda em Nietzsche, Heidegger afirma que “na medida em que a tekné é colocada expressamente em ligação com a produção de coisas belas e de sua representação, a meditação sobre a arte ao longo do caminho sobre o belo se volta para o âmbito da estética”. Esse momento da arte, o das estéticas modernas, sucede o das poéticas clássicas, e tem em Kant, que advoga a favor da possibilidade de transmissão da sensibilidade e do prazer estético, seu principal expoente – a cultura estética. O termo estética (aisthesis), que passa a designar o ramo da filosofia relacionado à essência e à percepção do belo e do feio, é introduzido em 1753, pelo teórico Alexandre Baumgarten. A experiência estética tem como agente o fruidor, que mediante seu aparato sensorial confronta-se com o belo ou o sublime, por exemplo. Na Crítica da Faculdade do Juízo, o filósofo de Königsberg afirma que o “belo é o que apraz universalmente sem conceito”, o que ocorre quando contemplamos um caso de beleza específico (uma rosa ou uma pedra preciosa), onde o pensamento consegue abarcar a totalidade do belo, pois a beleza se contém em si própria. Esses casos, que aprazem universalmente, podem ser considerados exemplos particulares de uma regra para a qual não há definição. O belo, em Kant, tem um caráter lúdico, prazer que visa o compartilhar, enquanto o sublime promove uma percepção de algo que nos supera, que nos é superior. No contato com o sublime, nosso pensamento é incapaz de dar conta do todo, colocando-nos o ato de maneira aflitiva. O olhar tenta percorrer as ruínas de um grande e vetusto templo, mas a imaginação nos conduz a observar somente as partes da obra, frustrando nosso anseio pela totalidade. A contemplação do sublime deve se cautelosa, pois, se a distância comove, a proximidade assusta – uma experiência de reposicionamento do sujeito na realidade, já que perante a magnitude de determinadas obras somos arremessados em nossa pequenez existencial. O momento estético é um momento aonde a filosofia vai se preocupar com o modo como a impressão do objeto artístico vai impactar o espectador - quais as sensações, os sentimentos, as percepções do receptor diante da arte. Nesse sentido, o sujeito estaria fadado a sensibilizar-se a partir do dado externo, como coloca Kant, na Crítica da Razão Pura.

“Eu mesmo e meus estados somos o ente primeiro e propriamente dito; tudo o que de outro modo possa ser interpelado como ente é medido a partir de e de acordo com esse ente assim certo (...) A meditação sobre a arte volta-se agora, de maneira acentuada e exclusiva, para o interior da ligação com o estado sentimental do homem, com a aisthesis"” (HEIDEGGER, Martin. Nietzsche – volume I. Ed. Forense Universitária. Pág. 77).


O ideal romântico do Bildung (“formação cultural”), então, passa a nortear a busca dos valores artísticos a partir da Antiguidade, erigindo o terreno de onde, mais adiante, germinaria a filosofia da arte - um fenômeno que poderíamos chamar de “arqueologia da arte”. Essa dinâmica de compreensão tem por base a concepção hegeliana de processo histórico - marca do pensamento moderno. A estética, que para Kant era o estudo dos sentidos, é para Hegel o pensamento sobre o belo artístico, expressão máxima da subjetividade no romantismo, que não queria mimetizar, mas somente expressar o espírito humano. O desequilíbrio entre forma e conteúdo, entre natureza e espírito humano, é também característico dessa fase, e, para o filósofo alemão, a arte é produção do espírito humano, sendo superior a qualquer produção da natureza - ao admirarmos o sol, por exemplo, estamos a admirar o nosso próprio espírito. A arte, nesse contexto, estaria acima da natureza, mas abaixo do espírito humano, opinião não compartilhada por Schelling e Goethe, que tentam empreender uma filosofia da natureza. Na Estética, ao excluir o belo natural de sua análise, Hegel defende-se dizendo que “a toda ciência cabe o direito de se definir como queira”, ou seja, toda ciência pode definir seu campo de atuação. Mas quem faz ciência são os homens, logo, cabe aos homens definir os limites das ciências, das artes e das produções humanas.

Objetivamente, nosso terceiro momento da arte, o das estéticas do artista, caracteriza-se pela vontade criadora, i.e., pela estética ativa, que age através de pulsões artísticas inconscientes, diria Nietzsche. Se os gregos antigos expressavam sua arte sem conceitos, o artista dessa fase irá construir com profundidade sua obra, esmerando-se em lapidar sua criação com fundamentos e referências encontrados, sobretudo, na alteridade e na distância. A filósofa Rosana Suarez acrescenta: “Em Nietzsche, onde a arte tem uma dimensão metafísica, e em Schiller, onde a dimensão da arte é ética, o fenômeno arte funciona como um portal para a questão do ser”.


“Ser artista é um poder-produzir. Produzir, porém, significa o seguinte: posicionar algo no âmbito do ser. Na produção moramos como que junto à gênese do ente e podemos visualizar aí a sua essência sem turvamentos” (HEIDEGGER, Martin. Nietzsche – volume I. Ed. Forense Universitária. Pág. 63).


No entanto, poderíamos sugerir que essas análises, que categorizam os diversos momentos da arte, acabam por colocar em risco a totalidade da produção artística, uma vez que todas as supracitadas etapas são aspectos de uma mesma coisa: a própria arte. E sendo devir (movimento e contra-movimento), a arte mesma não se adéqua muito bem ao cerceamento, fluindo através de rachaduras conceituais, como faz a água quando aprisionada dentro da montanha. Pensar a arte como ferramenta existencial, como dispositivo doutrinador da liberdade da criação, coloca-se como uma importante questão: Quais são as possibilidades? Quais os limites? Não há regra a priori para fazer arte. O que parece interessar mais à arte contemporânea é a habilidade do artista de experimentar e compor novas perspectivas; fomentar signos abertos. Em poucas palavras, poderíamos definir os signos como entidades psíquicas de significação, uma vez que representam algo para alguém. Diferentemente de um signo fechado, que tem seu leque de sentido restrito e pré-estabelecido pelo emissor (autor), um signo aberto é permeado de possibilidade de (re)significação – o signi não fica, vai ao infinito. E assim como as possibilidades de ser não se esgotam, a arte contemporânea parece ser capaz de produzir obras com sentidos e interpretações diversas: obras abertas e em movimento.

“A poética da obra em movimento (como em parte a poética da obra “aberta”) instaura um novo tipo de relações entre artista e público, uma nova mecânica da percepção estética, uma diferente posição do produto artístico na sociedade; abre uma pagina de sociologia e de pedagogia, além de abrir uma página da história da arte. Levanta novos problemas práticos, criando situações comunicativas, instaura uma nova relação entre contemplação e uso da obra de arte. Esclarecida em seus pressupostos históricos e no jogo de referências e analogias que a aparentam com vários aspectos da visão contemporânea do mundo, esta situação da arte é agora uma situação em via de desenvolvimento que, longe de estar completamente explicada e catalogada, oferece uma problemática em mais níveis. Em suma, uma situação aberta e em movimento” (ECO, Humberto. Obra aberta. Ed. Perspectiva. Pág. 65 e 66).


Nesse sentido, uma obra de arte pode ser definida como uma obra aberta (ou em movimento) caso apresente em sua estrutura uma ou mais brechas que possibilitem contínuas re-interpretações, permitindo aos fruidores (receptores) leituras que vão além dos limites estabelecidos pelo artista. Isto é, se uma obra se apresenta fechada em sua totalidade, com idéias objetivas, que não fogem do óbvio e não permitem o exercício de nossa capacidade imaginativa, ela não possibilita ao observador transformar e participar do processo artístico como um todo. Mas se uma obra traz em sua estrutura certa essência poética, bem como cultiva o exercício de confronto com diferentes matizes de percepção, ela se desdobra em uma nova arte.

Evgen Bavcar, mais conhecido como O Fotógrafo Cego, é um exemplo de artista que trabalha com obras abertas, uma vez que, desprovido de seu sentido de visão, não contempla diretamente sua produção final, deixando a interpretação a seus espectadores. Bavcar, mesmo incapaz de utilizar-se da visão, participa diretamente da gênese de suas obras através do aprimoramento de outros canais perceptivos, como a audição e o tato. Nas artes plásticas e cênicas, mais do que nunca, busca-se um movimento de concepção multilateral da obra, onde a inter-ação do espectador é tão fundamental quanto as orientações apresentadas pelo artista.

“Uma obra assim entendida é, sem dúvida, uma obra dotada de certa abertura; o leitor do texto sabe que cada frase, cada figura se abre para uma multiformidade de significados que ele devera descobrir; inclusive, conforme seu estado de animo, ele escolhera a chave de leitura que julgar exemplar, e usará a obra na significação desejada (fazendo-a reviver, de certo modo, diversa de como possivelmente ela se lhe apresentara numa leitura anterior). Mas nesse caso “a abertura não significa absolutamente ‘em definição’ da comunicação, ‘infinitas’ possibilidades da forma, liberdade da fruição; há somente um feixe de resultados fruitivos rigidamente pré-fixados e condicionados, de maneira que a reação interpretativa do leitor não escape jamais ao controle do autor”. (ECO, Humberto. Obra aberta. Ed. Perspectiva. Pág. 43).

A partir do século XIX, o ser humano, com seus ideais de produção, inserindo o paradigma industrial na realidade social, parece desumanizar a arte. De maneira distinta da fase mimética, que reproduzia concepções em escala quase que manufaturada, a sociedade industrial inicia um legado de reprodução em massa, ampliando o universo de possíveis receptores-consumidores – a arte passa a figurar também nos catálogos dos grandes conglomerados. Mas ainda assim essas definições carecem de alguma atualização, de nova perspectiva, uma vez que a própria obra de arte é sempre atual enquanto acontecimento. De fato, cada época parece ter sua dívida em relação às outras, e o conceito de “arte após o fim da arte” talvez nos possibilite olhar o que foi realizado na totalidade artística. Para Hegel, a arte tem a intenção de se espiritualizar, transformando-se, por conseguinte, em pensamento. A arte, além de ser “incapaz de satisfazer à nossa exigência do Absoluto”, também traz nela mesma o seu fim. Sem utilidade, se comparada ao martelar de um martelo, a arte passa a emular o palco bretcheano, transmudando-se em palanque, onde o “artista já não é apenas desviado e influenciado por reflexões que ouve formular cada vez mais alto à sua volta”, mas é sufocado pela agitação de seu tempo.

Ao tentar comungar conceitos tão distintos a um leque tão profuso de possibilidades criadoras, se estabelece o paradigma da arte contemporânea. Onde antes era lugar da obra, do fruidor ou do autor, agora é espaço para a convergência de todas essas subjetividades e objetividades, díspares no tempo e no espaço. “A arte vive o crepúsculo dos ídolos”, nas palavras nietzscheanas de Suarez. Diante disso, segue ecoando a pergunta em suas múltiplas facetas: O que é a arte? O que é arte? O que é um objeto de arte? Longe de acreditar ter encontrado tais respostas, arriscaria um palpite de que a arte na contemporaneidade, mais do que nunca, torna-se um vetor de construção de subjetividades e objetividades – na pulsão, na ciência, na práxis e na theoria. A obra, reflexo do movimento contemplação interior e exterior da existência, seria como a síntese de um estado de espírito, a cicatriz que acolhe uma história. E mesmo que, no limite de uma investigação mais profunda, se argumente que a arte nunca existiu, surge uma nova questão: Como designar fenômeno tão substancial?

Viver da arte é para muito poucos, mas viver com arte deveria ser prescrição médica anexada à certidão, pois aos olhos de uma criança, criatura capaz de reinventar o sentido das coisas (“um novo recomeçar, um brinquedo, uma roda que gira por si mesma”), a arte não passa de bagunça criadora. E para que se estabeleça qualquer nova ordem faz-se necessária, ainda que através de um feixe, a presença de um caos.

BIBLIOGRAFIA
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ECO, Umberto. Obra Aberta. São Paulo: Perspectiva, 2003.
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_______________. Crítica da Razão Pura. Coleção “Os Pensadores”. São Paulo: Nova Cultural, 2005.
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1994.
NIEZTSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. São Paulo: Martin Claret Ltda., 2008.
____________________. O Nascimento da Tragédia. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.