31 de ago. de 2009

O PRESENTE LEGADO - A EXISTÊNCIA PELO PRISMA DAS PALAVRAS

“O essencial é vivido na presença, as objetividades no passado” (Martin Buber)

O presente trabalho foi realizado no intuito de mostrar a relação indissociável entre Existência e Palavra, componentes que parecem fundamentar nossa participação no mundo. A Grécia Arcaica, que se estende dos séculos IX a.C. ao VI a.C., guarda uma importante herança para a compreensão dessa história no pensamento ocidental. O conhecimento que nos foi legado pelos antigos gregos diz respeito à nossa relação com as palavras e, conseqüentemente, com os entes e sua presença – realidades que plasmaram a cultura helênica nas fases do Mito e do Logos, perdurando, ainda que de maneira inconsciente, até os nossos dias. Se acreditarmos, por exemplo, que a existência se revela na experiência dialógica, ou seja, no aspecto relacional da vida, temos de concordar que, para tanto, é necessário que haja comunicação. Esta, por sua vez, se apresenta via linguagem e acompanha não só o homem, mas todos os seres que estabelecem algum tipo de interatividade entre si. Em cada pequeno gesto há o ato de comunicar. “O mundo dos significados não é outro senão o da linguagem”, diz Roland Barthes em Ensaios de Semiologia.

Se hoje participamos do fenômeno Sociedade da Informação (ou da Comunicação), é porque em algum momento a história humana adentrou ao recinto da Palavra, isto é, dos processos de significação. E, para que essa empresa tivesse sucesso, um dos primeiros estágios da compreensão humana sobre o mundo ocorreu na relação com o mito. Jaa Torrano, sobre a importância da vivência mítica, classifica o mito como “a experiência do Sagrado”, descrevendo a linguagem como “objeto de uma experiência numinosa”. Ao participar de um culto a Dionísio, por exemplo, o grego não se deparava somente com interpretações e atuações de outros gregos (o lado meramente teatral do evento), mas confrontava-se, antes, com o próprio deus encarnado.

“A linguagem é, neste caso, a linguagem do aedo, i.e., a canção – uma canção que ao mesmo tempo é veículo de uma concepção do mundo e suporte de uma experiência numinosa”(TORRANO, Jaa. Teogonia – a origem dos deuses. Ed. Iluminuras. Pág. 14).

Tal experiência, no entanto, passa a fazer sentido somente se levamos em conta o papel preponderante das Musas (Mousai), que com sua numinosa presença autorizavam os poetas (aedos) a cantar os entes, trazendo à luz o que estava esquecido e levando ao mundo do esquecimento o que não se queria desvelar - as Musas, filhas de Zeus e Memória (Mnemosyne), diziam tanto mentiras parecidas com verdades, quanto verdades. A relação desse poder com a palavra alethéia (desvelamento, verdade) é evidente, pois somente as Musas, testemunhas oculares dos eventos, estavam habilitadas a cantar - contar e reviver - os fatos. Eram elas: Glória, Alegria, Festa, Dançarina, Alegra-coro, Amorosa, Hinária, Celeste e Belavoz, que vinha à frente das irmãs.

“O poeta, portanto, tem na palavra cantada o poder de ultrapassar e superar todos os bloqueios e distâncias espaciais e temporais, um poder que só lhe é conferido pela Memória (Mnemosyne) através das palavras cantadas (Musas). (...) Portanto, o canto (as Musas) é nascido de Memória (num sentido psicológico, inclusive) e do mais alto exercício do Poder (num sentido político, inclusive)” (TORRANO, Jaa. Teogonia – a origem dos deuses. Ed. Iluminuras. Pág. 16).

Cumpre-se aqui fazer uma pequena, porém importante, distinção entre os períodos arcaico e clássico da Grécia: No primeiro observamos uma maior preocupação com a utilização da narrativa, da alegoria e da imagem – traços que ajudam a compor o mito, estabelecendo uma noção de verdade com ênfase na memória – crer para ver. No período seguinte, se estabelecesse o primado da razão, do logos, do discurso, onde a verdade filosófica, impulsionada pelo advento da escrita, torna-se uma verdade epistemológica - o “ver pra crer”. Em suma, a verdade filosófica está mais para a adequação da mente com a coisa (adaequatio rei ad intellectus), enquanto sua precedente lida com uma verdade axiológica (axios = valor).

“Com os pensadores a linguagem põe-se a caminho de tornar-se abstrato-conceitual, racional, hipotátíca e desencarnada (na perfeição do processo, o nome se torna um signo convencionado para a coisa nomeada)” (TORRANO, Jaa. Teogonia – a origem dos deuses. Ed. Iluminuras. Pág. 17).

Logo, a verdade mítica é mediada pela psicagogia no fruidor, via processo de catarse, i.e., de comoção, de “mover-se junto ao acontecimento”. Ao ouvir o canto do aedo, o espectador era imediatamente transportado para a presença das Musas, vivenciando e comovendo-se com os eventos por elas desvelados. A relação entre mito e realidade era tão amalgamada que, antes do canto, o aedo pedia às Musas que o autorizassem a cantar (e contar), como se observa no Proêmio às Musas, primeiro trecho da Teogonia de Hesíodo: “Pelas Musas heliconíades comecemos a cantar”. Mediante tal fato é que o professor Marcus Reis pode afirmar que “uma análise psicologizante do mito na Grécia é, no mínimo, anacrônica”, visto que muitos dos conceitos abordados pela psicologia só foram concebidos muitos séculos depois – a dimensão moderna de subjetividade no ser humano, por exemplo, só começa a ser pensada na Modernidade com René Descartes.

É ainda válido recordar que, sendo oral ou escrita, a linguagem é palavra, e que esta sempre tem por meta presentificar os objetos no discurso, pois, quando proferidas, solicitam instantaneamente suas significações. E o homem é um ser de significação, procurando sentido em tudo que o rodeia, e é nesse processo, no qual deparamo-nos com a presença das coisas no gerúndio da ação, onde se desvela a totalidade e o compromisso com o agora. Seja futuro, presente ou passado, é no agora que emana e se apresenta o constructo da existência. E ainda que a escrita seja tirana, limitando, ferindo e cerceando as possibilidades de ser, ela sinaliza essa incapacidade, pois as possibilidades de ser jamais se esgotam.

Um biólogo, com o conhecimento que lhe cabe, dá a primeira e a última palavra sobre uma árvore qualquer. Um botânico, por sua vez, também fará o mesmo, mas de maneira diferente, uma vez que sua formação incute-lhe uma análise distinta da primeira. Nosso vegetal lenhoso, ao sofrer o exame de um mestre-carpinteiro, verá sua predicabilidade enriquecida, uma vez mais. Ora, o que se apresenta, com ares de ser parmênídico, nada mais é do que a persistência do ser dos entes em seu caráter inesgotável e permanente - e não há espanto em constatar que o Ser de Parmênides é analisado via logos, ou seja, palavra. Palavra, para Merleu-Ponty, é “o tecido do pensamento”, e tal assertiva se baseia no fato de que a linguagem faz a mediação entre nós e o mundo ao categorizar todas as nossas experiências através da combinação das letras, da normatização dos usos e das, aparentemente, infinitas possibilidades de sentido.

“São três as esferas nas quais o mundo da relação se constrói. A primeira é a vida com a natureza onde a relação permanece no limiar da linguagem. A segunda esfera é a vida com os homens onde a relação toma forma de linguagem. A terceira é a vida com os seres espirituais onde a relação embora sem linguagem gera a linguagem (...) todas são portas na presença da Palavra” (BUBER, Martin. Eu e Tu. Ed. Centauro. Pág. 118).

Ainda que não seja do intuito desse artigo analisar situações aquém (natureza) ou além (mundo espiritual) da linguagem, podemos prosseguir no raciocínio de Buber e complementá-lo com uma ressalva: mais do que aquém e além da linguagem, a existência se dá na linguagem. Descartes, em suas Meditações, parece reiterar esse raciocínio ao afirmar que “as palavras me contêm”. Portanto, o que se configura é uma certeza, ainda que contingente, de que se a existência se dá na linguagem, ela ocorre nos processos de significação, logo, nas palavras.

Quando sentimos um vazio inexplicável, uma sensação de tristeza profunda, um pesar arrebatador, nossa razão tenta apreender esse acontecimento, essa presença - apreender para compreender. Ao mover-se na direção de tal apreensão, a mente tenta explicar utilizando-se das ferramentas que possui para objetificar as coisas, ou seja, utilizando-se da nomenclatura, i.e., da estrutura da palavra que, bem como a linguagem, necessita de definição e de regulamentação para que o sentido se dê. A idéia implícita contida nesse princípio é a de que, para nos comunicar com uma base mínima de entendimento, é necessário que a mente, em seu movimento de significação, exerça uma atividade fundamental: repertorizar (arquivar, armazenar, organizar) as coisas como objetos. Quando pagamos contas num banco, declaramos sentimentos ocultos à pessoa amada, assistimos a um filme ou buscamos entender o motivo de uma tristeza qualquer, estamos diante do primado da Linguagem e da Palavra, e é nesse contexto onde nossa realidade se molda. Uma dor nunca seria compreendida como tal se já não estivesse repertorizada em nossa mente, segundo a mediação da seqüência de sons d-o-r, com uma determinada experiência sofrida anteriormente - base de referência nesse procedimento de distinção e identidade. No entanto, tal procedimento não é tão preciso quanto parece, visto que o sentido das coisas é relativo e incerto, o que proporciona, paradoxalmente, certa poesia e hermetismo em nossas vidas.

“E as palavras falam do que é real e do que não é real, apresentando-os quando e como elas querem. As Palavras falam tudo, elas apresentam o mundo (...) nas Palavras reside o ser. Esta imbricação recíproca de linguagem e ser não é senão a recíproca imbricação de linguagem e poder” (TORRANO, Jaa. Teogonia – A origem dos deuses. Ed. Iluminuras. Pág. 30).

A grande maioria das enciclopédias e livros de História Geral aceita que a escrita surgiu como etapa posterior à fase oral nas sociedades antigas, ou seja, como conseqüência da capacidade de raciocínio, de síntese e da necessidade de normatização das relações humanas. No período Neolítico, isto é, na Idade da Pedra, a transmissão oral era suficiente para suprir as demandas comunicacionais existentes em um determinado grupo. Com o advento da agricultura, ocorreu o crescimento e o estabelecimento de determinadas populações num mesmo local, o que proporcionou um aumento no nível de complexidade das funções exercidas na sociedade. Esses fatores, ao mesmo tempo em que solicitavam, estimulavam um modelo de comunicação que pudesse prover de forma mais objetiva e eficaz uma comunicação social, um modelo que tentasse retratar com o máximo de fidelidade a realidade, as coisas da vida: a escrita.

Inicialmente cunhada com o intuito de mensurar a largura de canais, a altura das paredes nos templos, a quantidade de cereais estocados, ou seja, como notação precisa das informações necessárias à sobrevivência de dada população, a escrita emergiu em sua forma pictórica na Suméria, atual sul do Iraque, aproximadamente em 3.500 a. C. O pictograma foi a primeira versão da escrita cuneiforme, que mais tarde evoluiu para o ideograma, e posteriormente para a escrita silábica. Para falar de determinado objeto bastava traçar determinada figura, convencionada consensualmente pelo grupo. Estava iniciada uma nova era na comunicação do homem com o mundo, uma nova etapa na relação do homem com o simbolismo das palavras. E é na transição do mito ao logos onde devemos fixar atenção, pois lá encontramos um precioso fundamento de nossa concepção sobre a realidade – somos seres de linguagem e este é nosso horizonte de possibilidades e limitações. A procura por entendimento e identidade parece um exercício sem fim, porém, uma finalidade existencial que só depende da presença numinosa das palavras.

BIBLIOGRAFIA
BARTHES, Roland. Elementos de semiologia. São Paulo: Cultrix, 2006.
BUBER, Martin. Eu e Tu. São Paulo: Centauro, 2006.
DESCARTES, René. Meditações. Coleção “Os Pensadores”. São Paulo: Nova Cultural, 1999.
MORA, José Ferrater. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
REALE, Giovanni. História da Filosofia – Vol. I. São Paulo: Loyola, 2008.
TORRANO, Jaa. Teogonia – A origem dos deuses. São Paulo: Iluminuras, 2007.

Nenhum comentário: