2 de jun. de 2009

NOS APRIORISMO DO SUJEITO - A NOÇÃO DE TEMPO E ESPAÇO EM KANT

“Parece-me, pois, que quem sabe alguma coisa sente o que sabe. Assim, o que se me afigura neste momento é que conhecimento não é mais do que sensação” (Platão, Teeteto)

A vida é permeada por diversos fenômenos e, dentre todos que nos chegam, talvez sejam as noções de espaço e tempo as que mais fundamentam nossa existência e nossos processos de percepção, grosso modo, de estruturação do conhecimento. Nisso acreditava Kant, que definia ambos os conceitos como as duas formas de conhecimento sensível a priori, isto é, os dados sem os quais seria impossível conhecer. Percebendo as coisas durando no tempo e dispostas no espaço, parece que estamos diante do movimento primeiro da existência. E foi no intuito de abordar as noções kantianas de tempo e espaço, bem como ressaltar a importância das mesmas no pensamento do filósofo alemão, é que o presente trabalho foi feito.

A filosofia sempre teve por fundamento a preocupação com o conhecimento. Desde seu surgimento, com o pensamento pré-socrático, essa é uma de suas principais características. Como distinguir a verdade de meras ilusões? Como estabelecer critérios que auxiliem essa empresa? Onde encontrar respostas que deem conta da totalidade do mundo?, são algumas das questões propostas pela filosofia. Mas esse saber filosófico não é somente técnico e se volta mais ao enfoque teórico sobre o conhecimento do que ao saber prático do mesmo. Esse momento é comumente descrito como a fase de transição do Mito ao Logos, responsável por instaurar em definitivo o primado filosófico grego, na qual os esforços passam a convergir para a busca de respostas calcadas na razão. O conhecimento, antes encontrado nas divindades míticas (Hesíodo e Homero), é transferido à natureza (Tales, Anaxímenes, Leucipo etc.) e, em seguida, ao próprio homem (Sócrates e os sofistas), emulando uma espécie de declínio das fontes de conhecimento ao plano físico e uma ascensão do próprio conhecimento ao plano metafísico. Esse paradoxo, de fato, apenas atesta a aptidão natural do homem na busca pelo conhecimento.

“Todos os seres humanos naturalmente desejam o conhecimento. Isso é indicado pelo apreço que experimentamos pelos sentidos (...)” (ARISTÓTELES. Metafísica. Ed. Edipro. Pág. 43).

A metafísica (ou filosofia primeira segundo Aristóteles), desde os primórdios, busca uma dimensão para além do mundo sensível e inteligível, catapultando a verdade para um mundo apriorístico e inato, um mundo transcendental. Talvez o primeiro grande exemplo disso seja a teoria platônica das formas, que estabelece que o mundo sensível não é fonte de conhecimento confiável. Para se alcançar o verdadeiro conhecimento seria necessário buscar o Mundo das Idéias (ou Formas), que se localiza muito além das aparências, numa concepção (e preocupação) marcadamente metafísica – o próprio Aristóteles, porém, critica essa cisão platônica. É certo que esse movimento errante, característico do pensamento filosófico, que ora estabelece um mundo sensível e ora um mundo supra-sensível como matriz do conhecimento, foi o que permitiu o desenvolvimento de conceitos e o surgimento de análises mais profundas sobre a própria filosofia. Para ilustrar, podemos recorrer ao já citado núcleo dos pré-socráticos, que em seu longo percurso admitiu um mosaico de elementos (água, terra, fogo, ar, amor, discórdia, apeiron etc.) como o princípio, a causa incausada, a arché.

Se por um lado, a metafísica aponta para uma dificuldade em se precisar o saber, revelando-o como contingente e válido somente para determinadas épocas e critérios, por outro, ela permite que haja a flexibilização de seus próprios conceitos. Quando a Modernidade aponta como a salvação de todos os males da humanidade, trazendo uma mensagem otimista e anunciando os novos tempos, ela fixa seu discurso no determinismo das ciências – e o mesmo ocorre com o Iluminismo. Estas, por sua vez, revelam maestria ao lidar com situações controladas (e controláveis), porém, ao deslocar seus conhecimentos para o mundo, o quadro muda. Se desejo aquecer 100 mililitros de água à temperatura de 37 graus Celsius, a tarefa se torna fácil num laboratório. Mas se desejo fazer a mesma experiência em campo aberto, é preciso contar com uma vasta gama de fatores externos que fogem totalmente ao meu controle. E assim também é a vida humana, que mais semelhante ao segundo caso, coloca diversas variáveis em pauta - basta constatarmos a dificuldade da tarefa ética para determinar modelos absolutos.

“Se a elaboração dos conhecimentos pertencentes ao domínio da razão segue ou não o caminho seguro de uma ciência, isso deixa-se julgar logo a partir do resultado (...) tal estudo acha-se ainda bem longe de ter tomado o caminho seguro de uma ciência, constituindo-se antes um simples tatear (...)” (KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura – Coleção “Os Pensadores. Ed. Nova Cultural. Pág. 35).

Com a idéia do cogito cartesiano, o pensamento filosófico passa a trabalhar com um conceito de subjetividade altamente intenso. Distinto de qualquer outra época da história, o conhecimento agora se instala na subjetividade humana, reacendendo o debate sobre as origens do conhecer. No entanto, e cada vez mais, as ciências foram se distanciando das questões humanas, voltando-se para questões de ordem objetiva. Onde estava a redenção prometida pela Modernidade e pelo Iluminismo? Por que motivo era constatado o avanço vertiginoso das ciências exatas e uma dificuldade em se aplicar o pensamento ético? Qual a importância da filosofia? O que fazer com a metafísica? Essa foi a preocupação de Kant que, notando esse desequilíbrio, decidiu empreender uma filosofia que pudesse analisar quais eram, de fato, as possibilidades reais de conhecimento. No Prefácio à Segunda Edição da Crítica da Razão Pura, obra fundamental para a compreensão do pensamento do filósofo, lê-se:

“A Metafísica, um conhecimento da razão inteiramente isolado e especulativo que através de simples conceitos (não como a Matemática, aplicando os mesmos à intuição), se eleva completamente acima do ensinamento da experiência , na qual portanto a razão deve ser aluna de si mesma, não teve até agora um destino tão favorável que lhe permitisse encetar o caminho seguro de uma ciência, não obstante ser mais antiga do que toda as demais e de que sobreviveria mesmo que as demais fossem tragadas pelo abismo de uma barbárie que a tudo exterminasse” (KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura – Coleção “Os Pensadores. Ed. Nova Cultural. Pág. 38).

Já que as ciências existem, como devem ser o sujeito do conhecimento e o objeto conhecido para que haja conhecimento? Se para Descartes, o objeto é o que tenho ou em mente ou fora dela, para o pensamento kantiano, o objeto é uma soma de cognições, sendo sintetizado ao final de um processo. Kant parte da idéia de que o sujeito está fadado a sensibilizar-se a partir do dado externo, mas que só há produção de conhecimento com a participação direta do sujeito cognoscente, isto é, o objeto se regula pela faculdade de conhecer do sujeito – princípios a priori que sintetizam os dados da experiência. “Etimologicamente, faculdades são poderes de realizar algo, são forças cognitivas”, esclarece a professora Rosana Suarez. Dentre as faculdades apresentadas por Kant, é a faculdade da sensibilidade (e afecção sensível) a que mais interessa a este trabalho, uma vez que é lá que encontraremos as definições de tempo e espaço.

Na Estética Transcendental, primeira parte da Crítica da Razão Pura, Kant explica que o modo ao qual “todo pensamento como meio tende, é a intuição”, e que esta “só ocorre na medida em que o objeto nos for dado”. Esta capacidade de obter representações é chamada de sensibilidade e “apenas ela fornece intuições”, elementos com característica instável que necessitam da abordagem do entendimento. Este, por sua vez, é a faculdade pela qual “os objetos são pensados e dele se originam conceitos”. Mas vamos nos ater somente à primeira etapa: a faculdade da sensibilidade, responsável pela produção da sensação, mediante implicação de determinado objeto. A intuição referente ao “objeto mediante sensação denomina-se empírica” e o “objeto indeterminado de uma intuição empírica denomina-se fenômeno”. A sensação do fenômeno relaciona-se com a matéria, e o que possibilita seu ordenamento é a forma, ou seja, enquanto a matéria nos é dada a posteriori, a forma está à disposição a priori, separada de toda sensação. Resumidamente, a sensibilidade, pura receptividade, é um campo que recebe e conforma o material, e suas formas puras (inatas e inconscientes) são espaço e tempo, que são independentes da experiência sensível. É como se nossa capacidade de conhecer tivesse início com modelos básicos de estruturação do conhecimento (tempo e espaço), que já estão inseridos em nosso aparato perceptivo, não necessitando de nenhum tipo de regulação posterior.

“Denomino puras (em sentido transcendental) todas as representações em que não for encontrada nada pertencente à sensação (...) Essa forma pura de sensibilidade também se denomina ela mesma intuição pura (...) Denomino estética transcendental uma ciência de todos os princípios da sensibilidade a priori (...) há duas formas puras da intuição sensível, como princípios do conhecimento a priori, a saber, espaço e tempo” (KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura – Coleção “Os Pensadores. Ed. Nova Cultural. Pág. 72).

Kant define o espaço como o sentido externo que nos representa os objetos como fora de nós. Já o tempo é definido como o sentido interno onde a mente consegue intuir a si mesma, de modo a tudo representar em relação ao tempo. “O tempo não pode ser intuído externamente, tampouco quanto o espaço como algo em nós”, alerta o filósofo. Os fragmentos abaixo, retirados da Estética Transcendental, servem para ilustrar ambos os conceitos:

Espaço

1) O espaço não é um conceito empírico abstraído de experiências externas (...) esta própria experiência externa é primeiramente possível só mediante referida representação;
2) O espaço é uma representação a priori necessária que subjaz a todas as intuições externas (...) Ele é, portanto, considerado a condição de possibilidade dos fenômenos;
3) O espaço não é um conceito discursivo ou, como se diz, um conceito universal de relações das coisas em geral, mas sim uma intuição pura (...) O espaço é essencialmente uno;
4) O espaço é representado como uma magnitude infinita dada (...) A representação originária do espaço é, portanto, intuição e não conceito.
Tempo
1) O tempo não é um conceito empírico abstraído de qualquer experiência;
2) O tempo é uma representação necessária subjacente a todas intuições (...) O tempo é portanto, dado a priori. Só nele é possível toda a realidade dos fenômenos;
3) Sobre essa necessidade a priori também se funda a possibilidade de princípios apodíticos das relações de tempo, ou de axiomas do tempo em geral. Ele possui uma única dimensão: diversos tempos não são simultâneos, mas sucessivos (assim como diversos espaços não são sucessivos, mas simultâneos);
4) O tempo não é um conceito discursivo ou, como se diz, um conceito universal, mas uma forma de intuição sensível;
5) A infinitude do tempo nada mais significa senão que toda magnitude determinada do tempo só é possível mediante limitações de um tempo subjacente.
(KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura – Coleção “Os Pensadores. Ed. Nova Cultural. Pág. 75 à 78).


Ao conceber essas formas de intuição, Kant termina por inaugurar uma nova etapa no pensamento moderno, pois ao resgatar as possibilidades de conhecimento ele acaba por estabelecer os limites do mesmo; característica que parece apontar para a necessidade de se adotar uma postura mais criteriosa e relativista nos campos do saber. Se o conhecimento, que é mediado por uma série de cognições (faculdades), faz a exigência de formas a priori para se estabelecer, é porque ele não faz julgamento de subjetividades, mas se coloca, ao contrário, antes delas. E essa premissa, ainda que de maneira velada, recupera a dignidade humana, recolocando a questão sobre a capacidade de conhecer sob uma ótica mais democrática – e certamente mais bem distribuída do que o bom senso cartesiano. E se fazer metafísica é perscrutar o sujeito humano para além de suas fronteiras, para além de subjetividade e objetividade, então Teeteto estava parcialmente certo, pois o conhecimento não está somente nos sentidos. O conhecimento é simultaneamente aquém e além de nossa capacidade de conceituar. O conhecimento é um estado e não um lugar.

BIBLIOGRAFIA

ARISTÓTELES. Metafísica. São Paulo: Edipro, 2006.
KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Coleção “Os Pensadores”. São Paulo: Nova Cultural, 2005.