13 de abr. de 2009

ENTRE A TÉCNICA E A ABERTURA: UMA REFLEXÃO SOBRE A ARTE CONTEMPORÂNEA

“A arte dos nossos dias tem por finalidade servir de objeto ao pensamento (...) a arte cultiva o humano no homem” (G. W. F. Hegel).

A clássica pergunta o que é a arte?, atualizada para nossos dias, poderia ser o que é arte? ou, de maneira mais objetiva, o que é uma obra de arte? Grafismos virtuais, plásticas elásticas, aparelhos com botões para distanciar e aproximar vidas, pequenas grandes coqueluches ornamentais e híbridos portáteis, são algumas das características do montante que circunscreve e, somente por vezes, integra o que chamamos de arte – somente por vezes, pois muitas coisas nos chegam como objeto artístico não passando de mera (re)produção industrial. Logo, não seria exagero dizer que a arte contemporânea é um gigantesco e complexo caleidoscópio de possibilidades, que abarca desde o tipo de material utilizado na obra às leituras e interpretações da mesma - podemos observar esse mosaico aspecto na música, na pintura, na poesia e em muitos outros gêneros artísticos.

A arte, enquanto importante eixo de relações de identidade e cultura nas sociedades, sempre está a reciclar suas estruturas e valores, garantindo uma constante discussão sobre quais noções norteiam a própria definição de arte. E independente de qual seja a resposta sobre seu horizonte, o certo é que a arte nos insta sempre que se apresenta: despertando um sentimento de repulsa, diluindo-se numa massa informativa qualquer ou possibilitando uma singular experiência estética. A arte tem natureza mutante, é o próprio devir, é o thauma (espanto) pulverizado nas searas da existência. Via obra, ela solicita, afasta, encanta e, para muitos, reconduz aos verdadeiros trilhos do saber filosófico.

“Esta situação acentua-se no pensamento de Merleau-Ponty: ‘como poderá então – pergunta-se o filosofo – uma coisa apresentar-se verdadeiramente a nós, já que a síntese nunca se completa’... Essa ambigüidade não é uma imperfeição da existência ou da consciência, mas é sua própria definição... a consciência, que passa por ser o lugar da clareza, é , ao contrario, o próprio lugar do equívoco (...) propondo ao artista, assim como ao filosofo e ao psicólogo, afirmações que não podem deixar de ter uma função de estimulo à sua atividade formativa: é portanto essencial à coisa e ao mundo apresentarem-se como “abertos”....prometer sempre “algo mais a ver” (ECO, Humberto. Obra aberta. Ed. Perspectiva. Pág. 59).

Na tentativa de delinear suas características, poder-se-ia dividir a arte em três momentos: das poéticas clássicas, onde a análise se concentra na obra; das estéticas modernas, com o foco no receptor; e o momento das estéticas do artista, que valoriza o estado criador. No primeiro estágio a arte era constituída por doutrinas normativas, preocupando-se, mormente, com as técnicas de produção - Como construir uma tragédia? Como reproduzir uma epopéia? Quais as características de um poema lírico? Essa fase tem como alicerce a mimese (imitação), que compreende a produção artística como cópia de situações reais e/ou um mero saber voltado para a práxis (prática) – se necessito de um objeto para descansar minhas pernas, construo uma cadeira; se preciso atravessar um rio, faço uma ponte. E a própria noção de poesia remete ao ato de pôr algo no âmbito do ser, ou seja, criar.

Autoridade no assunto, Aristóteles, em concordância com suas produções filosóficas, foi o primeiro a escrever uma obra que normatizava e categorizava os diferentes gêneros de poesia (poiesis). Na Poética, o estagirita esmiúça técnicas para a composição de tragédias, epopéias, ditirambos, dentre outros, fundamentando um importante legado prático-teórico sobre a arte. “A tragédia é imitação de uma ação em sua totalidade”, “Essas são as duas partes da fábula: a peripécia e o reconhecimento” e “Os episódios, nos dramas, devem ser breves; diferentemente do que sucede na epopéia” são algumas das definições encontradas nessa obra. Sobre a relação entre arte e técnica, diz-nos Martin Heidegger:


“(...) os gregos denominavam tanto a arte quanto o artesanato com a mesma palavra: tekné; e, de maneira correspondente, o artesão e o artista com o termo tekníthes"” (HEIDEGGER, Martin. Nietzsche – volume I. Ed. Forense Universitária. Pág. 74).


Ainda em Nietzsche, Heidegger afirma que “na medida em que a tekné é colocada expressamente em ligação com a produção de coisas belas e de sua representação, a meditação sobre a arte ao longo do caminho sobre o belo se volta para o âmbito da estética”. Esse momento da arte, o das estéticas modernas, sucede o das poéticas clássicas, e tem em Kant, que advoga a favor da possibilidade de transmissão da sensibilidade e do prazer estético, seu principal expoente – a cultura estética. O termo estética (aisthesis), que passa a designar o ramo da filosofia relacionado à essência e à percepção do belo e do feio, é introduzido em 1753, pelo teórico Alexandre Baumgarten. A experiência estética tem como agente o fruidor, que mediante seu aparato sensorial confronta-se com o belo ou o sublime, por exemplo. Na Crítica da Faculdade do Juízo, o filósofo de Königsberg afirma que o “belo é o que apraz universalmente sem conceito”, o que ocorre quando contemplamos um caso de beleza específico (uma rosa ou uma pedra preciosa), onde o pensamento consegue abarcar a totalidade do belo, pois a beleza se contém em si própria. Esses casos, que aprazem universalmente, podem ser considerados exemplos particulares de uma regra para a qual não há definição. O belo, em Kant, tem um caráter lúdico, prazer que visa o compartilhar, enquanto o sublime promove uma percepção de algo que nos supera, que nos é superior. No contato com o sublime, nosso pensamento é incapaz de dar conta do todo, colocando-nos o ato de maneira aflitiva. O olhar tenta percorrer as ruínas de um grande e vetusto templo, mas a imaginação nos conduz a observar somente as partes da obra, frustrando nosso anseio pela totalidade. A contemplação do sublime deve se cautelosa, pois, se a distância comove, a proximidade assusta – uma experiência de reposicionamento do sujeito na realidade, já que perante a magnitude de determinadas obras somos arremessados em nossa pequenez existencial. O momento estético é um momento aonde a filosofia vai se preocupar com o modo como a impressão do objeto artístico vai impactar o espectador - quais as sensações, os sentimentos, as percepções do receptor diante da arte. Nesse sentido, o sujeito estaria fadado a sensibilizar-se a partir do dado externo, como coloca Kant, na Crítica da Razão Pura.

“Eu mesmo e meus estados somos o ente primeiro e propriamente dito; tudo o que de outro modo possa ser interpelado como ente é medido a partir de e de acordo com esse ente assim certo (...) A meditação sobre a arte volta-se agora, de maneira acentuada e exclusiva, para o interior da ligação com o estado sentimental do homem, com a aisthesis"” (HEIDEGGER, Martin. Nietzsche – volume I. Ed. Forense Universitária. Pág. 77).


O ideal romântico do Bildung (“formação cultural”), então, passa a nortear a busca dos valores artísticos a partir da Antiguidade, erigindo o terreno de onde, mais adiante, germinaria a filosofia da arte - um fenômeno que poderíamos chamar de “arqueologia da arte”. Essa dinâmica de compreensão tem por base a concepção hegeliana de processo histórico - marca do pensamento moderno. A estética, que para Kant era o estudo dos sentidos, é para Hegel o pensamento sobre o belo artístico, expressão máxima da subjetividade no romantismo, que não queria mimetizar, mas somente expressar o espírito humano. O desequilíbrio entre forma e conteúdo, entre natureza e espírito humano, é também característico dessa fase, e, para o filósofo alemão, a arte é produção do espírito humano, sendo superior a qualquer produção da natureza - ao admirarmos o sol, por exemplo, estamos a admirar o nosso próprio espírito. A arte, nesse contexto, estaria acima da natureza, mas abaixo do espírito humano, opinião não compartilhada por Schelling e Goethe, que tentam empreender uma filosofia da natureza. Na Estética, ao excluir o belo natural de sua análise, Hegel defende-se dizendo que “a toda ciência cabe o direito de se definir como queira”, ou seja, toda ciência pode definir seu campo de atuação. Mas quem faz ciência são os homens, logo, cabe aos homens definir os limites das ciências, das artes e das produções humanas.

Objetivamente, nosso terceiro momento da arte, o das estéticas do artista, caracteriza-se pela vontade criadora, i.e., pela estética ativa, que age através de pulsões artísticas inconscientes, diria Nietzsche. Se os gregos antigos expressavam sua arte sem conceitos, o artista dessa fase irá construir com profundidade sua obra, esmerando-se em lapidar sua criação com fundamentos e referências encontrados, sobretudo, na alteridade e na distância. A filósofa Rosana Suarez acrescenta: “Em Nietzsche, onde a arte tem uma dimensão metafísica, e em Schiller, onde a dimensão da arte é ética, o fenômeno arte funciona como um portal para a questão do ser”.


“Ser artista é um poder-produzir. Produzir, porém, significa o seguinte: posicionar algo no âmbito do ser. Na produção moramos como que junto à gênese do ente e podemos visualizar aí a sua essência sem turvamentos” (HEIDEGGER, Martin. Nietzsche – volume I. Ed. Forense Universitária. Pág. 63).


No entanto, poderíamos sugerir que essas análises, que categorizam os diversos momentos da arte, acabam por colocar em risco a totalidade da produção artística, uma vez que todas as supracitadas etapas são aspectos de uma mesma coisa: a própria arte. E sendo devir (movimento e contra-movimento), a arte mesma não se adéqua muito bem ao cerceamento, fluindo através de rachaduras conceituais, como faz a água quando aprisionada dentro da montanha. Pensar a arte como ferramenta existencial, como dispositivo doutrinador da liberdade da criação, coloca-se como uma importante questão: Quais são as possibilidades? Quais os limites? Não há regra a priori para fazer arte. O que parece interessar mais à arte contemporânea é a habilidade do artista de experimentar e compor novas perspectivas; fomentar signos abertos. Em poucas palavras, poderíamos definir os signos como entidades psíquicas de significação, uma vez que representam algo para alguém. Diferentemente de um signo fechado, que tem seu leque de sentido restrito e pré-estabelecido pelo emissor (autor), um signo aberto é permeado de possibilidade de (re)significação – o signi não fica, vai ao infinito. E assim como as possibilidades de ser não se esgotam, a arte contemporânea parece ser capaz de produzir obras com sentidos e interpretações diversas: obras abertas e em movimento.

“A poética da obra em movimento (como em parte a poética da obra “aberta”) instaura um novo tipo de relações entre artista e público, uma nova mecânica da percepção estética, uma diferente posição do produto artístico na sociedade; abre uma pagina de sociologia e de pedagogia, além de abrir uma página da história da arte. Levanta novos problemas práticos, criando situações comunicativas, instaura uma nova relação entre contemplação e uso da obra de arte. Esclarecida em seus pressupostos históricos e no jogo de referências e analogias que a aparentam com vários aspectos da visão contemporânea do mundo, esta situação da arte é agora uma situação em via de desenvolvimento que, longe de estar completamente explicada e catalogada, oferece uma problemática em mais níveis. Em suma, uma situação aberta e em movimento” (ECO, Humberto. Obra aberta. Ed. Perspectiva. Pág. 65 e 66).


Nesse sentido, uma obra de arte pode ser definida como uma obra aberta (ou em movimento) caso apresente em sua estrutura uma ou mais brechas que possibilitem contínuas re-interpretações, permitindo aos fruidores (receptores) leituras que vão além dos limites estabelecidos pelo artista. Isto é, se uma obra se apresenta fechada em sua totalidade, com idéias objetivas, que não fogem do óbvio e não permitem o exercício de nossa capacidade imaginativa, ela não possibilita ao observador transformar e participar do processo artístico como um todo. Mas se uma obra traz em sua estrutura certa essência poética, bem como cultiva o exercício de confronto com diferentes matizes de percepção, ela se desdobra em uma nova arte.

Evgen Bavcar, mais conhecido como O Fotógrafo Cego, é um exemplo de artista que trabalha com obras abertas, uma vez que, desprovido de seu sentido de visão, não contempla diretamente sua produção final, deixando a interpretação a seus espectadores. Bavcar, mesmo incapaz de utilizar-se da visão, participa diretamente da gênese de suas obras através do aprimoramento de outros canais perceptivos, como a audição e o tato. Nas artes plásticas e cênicas, mais do que nunca, busca-se um movimento de concepção multilateral da obra, onde a inter-ação do espectador é tão fundamental quanto as orientações apresentadas pelo artista.

“Uma obra assim entendida é, sem dúvida, uma obra dotada de certa abertura; o leitor do texto sabe que cada frase, cada figura se abre para uma multiformidade de significados que ele devera descobrir; inclusive, conforme seu estado de animo, ele escolhera a chave de leitura que julgar exemplar, e usará a obra na significação desejada (fazendo-a reviver, de certo modo, diversa de como possivelmente ela se lhe apresentara numa leitura anterior). Mas nesse caso “a abertura não significa absolutamente ‘em definição’ da comunicação, ‘infinitas’ possibilidades da forma, liberdade da fruição; há somente um feixe de resultados fruitivos rigidamente pré-fixados e condicionados, de maneira que a reação interpretativa do leitor não escape jamais ao controle do autor”. (ECO, Humberto. Obra aberta. Ed. Perspectiva. Pág. 43).

A partir do século XIX, o ser humano, com seus ideais de produção, inserindo o paradigma industrial na realidade social, parece desumanizar a arte. De maneira distinta da fase mimética, que reproduzia concepções em escala quase que manufaturada, a sociedade industrial inicia um legado de reprodução em massa, ampliando o universo de possíveis receptores-consumidores – a arte passa a figurar também nos catálogos dos grandes conglomerados. Mas ainda assim essas definições carecem de alguma atualização, de nova perspectiva, uma vez que a própria obra de arte é sempre atual enquanto acontecimento. De fato, cada época parece ter sua dívida em relação às outras, e o conceito de “arte após o fim da arte” talvez nos possibilite olhar o que foi realizado na totalidade artística. Para Hegel, a arte tem a intenção de se espiritualizar, transformando-se, por conseguinte, em pensamento. A arte, além de ser “incapaz de satisfazer à nossa exigência do Absoluto”, também traz nela mesma o seu fim. Sem utilidade, se comparada ao martelar de um martelo, a arte passa a emular o palco bretcheano, transmudando-se em palanque, onde o “artista já não é apenas desviado e influenciado por reflexões que ouve formular cada vez mais alto à sua volta”, mas é sufocado pela agitação de seu tempo.

Ao tentar comungar conceitos tão distintos a um leque tão profuso de possibilidades criadoras, se estabelece o paradigma da arte contemporânea. Onde antes era lugar da obra, do fruidor ou do autor, agora é espaço para a convergência de todas essas subjetividades e objetividades, díspares no tempo e no espaço. “A arte vive o crepúsculo dos ídolos”, nas palavras nietzscheanas de Suarez. Diante disso, segue ecoando a pergunta em suas múltiplas facetas: O que é a arte? O que é arte? O que é um objeto de arte? Longe de acreditar ter encontrado tais respostas, arriscaria um palpite de que a arte na contemporaneidade, mais do que nunca, torna-se um vetor de construção de subjetividades e objetividades – na pulsão, na ciência, na práxis e na theoria. A obra, reflexo do movimento contemplação interior e exterior da existência, seria como a síntese de um estado de espírito, a cicatriz que acolhe uma história. E mesmo que, no limite de uma investigação mais profunda, se argumente que a arte nunca existiu, surge uma nova questão: Como designar fenômeno tão substancial?

Viver da arte é para muito poucos, mas viver com arte deveria ser prescrição médica anexada à certidão, pois aos olhos de uma criança, criatura capaz de reinventar o sentido das coisas (“um novo recomeçar, um brinquedo, uma roda que gira por si mesma”), a arte não passa de bagunça criadora. E para que se estabeleça qualquer nova ordem faz-se necessária, ainda que através de um feixe, a presença de um caos.

BIBLIOGRAFIA
ARISTÓTELES. Poética. Coleção “Os Pensadores”. São Paulo: Nova Cultural, 2004.
ECO, Umberto. Obra Aberta. São Paulo: Perspectiva, 2003.
HEGEL, Georg W. F. Estética. Coleção “Os Pensadores”. São Paulo: Nova Cultural, 2005.
HEIDEGGER, Martin. Nietzsche, volume I. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.
KANT, Immanuel. Crítica da Faculdade do Juízo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005.
_______________. Crítica da Razão Pura. Coleção “Os Pensadores”. São Paulo: Nova Cultural, 2005.
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1994.
NIEZTSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. São Paulo: Martin Claret Ltda., 2008.
____________________. O Nascimento da Tragédia. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

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